Arte Original: Eduardo Schloesser (Colorizado Digitalmente)

08 — Karenina (Um Conto de Luca Fiuza Com Rabiscos de Caneta Esferográfica Azul por Eduardo Schloesser)

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Luca Fiuza e Eduardo Schloesser


Zé Gatão:
Esta Aventura se Passa Logo Depois de Lígia.

Parte I

Zé Gatão depois de sua experiência no vale dos ursos não queria pelo menos por enquanto, voltar a morar em grandes cidades. Na verdade nunca gostara da vida urbana em megalópoles lotadas e violentas.

Preferia o contato com a natureza, ter liberdade de ir e vir. Era agradável sentir de dia, o calor do sol e dormir sob o céu estrelado nas noites cálidas daquelas regiões de clima ameno, mais ao sul. O felino cinzento vestia uma camiseta azul escura de mangas curtas, calças grossas de um bege claro e um par de tênis preto de cano alto, próprio para andar em descampados. Cabelos soltos ao vento. Mochila às costas. Depois de uns cinco dias, atravessando uma floresta de mata densa, o felino cinzento chegou até uma área de mangue ligada a um braço de mar. Mais adiante, o oceano podia ser visto impressionante, em sua imensidão. O rugido das ondas quebrando nos recifes pontiagudos que afloravam em meio à espuma revolta, fazia um forte contraste com a quietude da floresta e a suavidade do canto dos pássaros ao romper de cada manhã. O sol estava se deitando lentamente no horizonte, emprestando ao céu de fim de tarde tons avermelhados. Já se destacava no firmamento o brilho das primeiras estrelas da noite que se avizinhava.

Há uns cem metros da margem do mangue havia sido erigido um vilarejo de gatos-pescadores. Zé Gatão já havia ouvido falar destes felídeos raros e incomuns, mas nunca esperara se avistar com um deles. Por sinal, no umbral da porta de uma das casinholas que formavam o vilarejo um deles estava sentado fumando tranquilamente um pito artesanal. À aproximação do felino taciturno, saudou-o com voz arrastada e sem demonstrar apreensão pela chegada de um estranho: — Bá tarde, moço! Tu é taludo, pois não? – Zé Gatão não pode deixar de sorrir ante aquela observação simplória.

— Venho de longe, amigo e queria pedir pouso para esta noite. Depois acertamos o preço. – O pequeno felino soltou uma baforada de fumaça de odor adocicado e respondeu no mesmo tom arrastado: — Que isso, seu moço! É nosso dever acolher os viajantes! É bem vindo na minha casa. Me chamo Bento. Vamo entrando! Vossa mercê deve tá cansado e com fome!

— Obrigado. Quanto ao pagamento… – Retrucou Zé Gatão. O pequeno felino se levantou abanando a cabeça e se recusando em falar de dinheiro. Era de estatura média. Sua pele era de cor cinzenta-oliva com manchas escuras raiadas na face e nos braços. Olhos amarelados e cândidos. Cauda não muito longa de listras também escuras. Bigodes de cerdas brancas e barbicha da mesma cor. Envergava roupas simples de pano grosseiro, pardacento.

Calçava sandálias de couro cru e trazia enfiado na cabeça um chapelão de palha. Ao entrarem na casinha, o pequeno gato tirou o chapéu e o pendurou em um cabide de madeira rústico perto da porta. Era uma residência simples, mas aconchegante. Na minúscula cozinha, Bento pediu a Zé Gatão que se sentasse à mesa, enquanto acendia um candeeiro alimentado por óleo vegetal. Antes o felino fez suas abluções em um banheirinho contíguo à cozinha. Feito isso, sentou-se à mesa rústica em um banco também rústico feito da mesma madeira rija da mesa. O tampo da mesma estava coberto com uma toalha xadrez de plástico duro. No fogão de lenha fervia uma panela de sopa, e seu aroma agradável, aguçou mais ainda a fome de Zé Gatão. Embora tenha procurado ser discreto nesse sentido, o felino cinzento após servir-se generosamente, saboreou com prazer à frugal, mas deliciosa refeição. O anfitrião demonstrou satisfação com o apetite de seu hóspede. Ele mesmo comeu pouco e não repetiu. Em compensação, Zé Gatão repetiu umas quatro vezes por insistência e para o deleite de Bento. Conversaram bastante por cerca de uma hora e foram se deitar por volta das 20:30 horas. Pouco antes de o candeeiro ser apagado, Bento trouxe uma vela acesa para si e outra para Zé Gatão. De posse delas os dois felinos desejaram boa noite um para o outro e foram se recolher. A casinhola tinha dois quartos não muito grandes. Zé Gatão ficou em um deles. Logo o ressonar ritmado de Bento se pode ouvir no quarto ao lado. Apesar de cansado, o felino acinzentado custou a dormir. Ficou pensando como era difícil encontrar animais bondosos como o felino Bento. E os outros habitantes do vilarejo? Seriam como ele? Bem, amanhã descobriria. Tratou de dormir. Naquele ambiente singelo teve a melhor noite de sono de sua vida. Pela primeira vez, dormiu pesada e despreocupadamente.

Assim que amanheceu, os dois felinos já estavam de pé. Depois do café também frugal, Bento chamou os outros habitantes do vilarejo. Todos se reuniram diante da casa de Bento que era o líder daquela pequena comunidade de gatos-pescadores. Todos trataram Zé Gatão muito bem, embora de forma meio acanhada. As fêmeas ficaram junto a seus maridos, sorrindo de leve, cabeças baixas e de mãos nos lábios. Os filhotes mais soltos e com menos pudores, rodearam Zé Gatão, impressionados com seu físico avantajado e enchendo-o de perguntas. O felino cinzento pacientemente satisfez a curiosidade dos miúdos, saciando sua curiosidade infantil. Logo depois, Bento convidou o hóspede a ir pescar mexilhões com ele e mais um pequeno grupo de machos. Dirigiram-se todos ao mangue e se enfiaram em sua lama escura, mas salutar. Zé Gatão tinha facilidade em aprender e logo não ficou a dever a nenhum dos locais na habilidade e destreza para recolher os mexilhões. Uma hora depois, tomaram seus barcos e se lançaram no oceano, mergulhando em suas águas verdes além da arrebentação á procura de ostras e conchas dos mais variados tipos. Zé Gatão ficou impressionado com a capacidade pulmonar dos gatos-pescadores. Mesmo ele, não conseguia ficar tanto tempo submerso quanto aqueles felinos que se moviam habilmente tanto na superfície quanto sob as águas. Os mexilhões e alguns crustáceos recolhidos eram para consumo da comunidade. As pérolas em forma de colares adornavam os pescoços das fêmeas e eram também guardadas em casa como amuletos da sorte.

Duas semanas já tinham se passado. E Zé Gatão foi se deixando ficar na companhia de seus novos amigos. A deferência e o carinho daqueles felinos gentis, o faziam protelar sua partida, mas no fundo sabia que cedo ou tarde precisaria retornar as suas andanças.

Em uma ensolarada tarde, após voltarem da faina diária, Zé Gatão e seus amigos encontraram o vilarejo tomado por um destacamento canino de policiais. As fêmeas felinas, filhotes e idosos estavam sob a mira de armas no centro do arraial. O chefe da cachorrada, um vira-lata de semblante terrível vociferava, fazendo indagações pelas quais não obtinha resposta alguma por parte dos cativos aterrados. Bento aproximou-se lento, perguntando arrastadamente o que estava sucedendo. O vira-lata se virou de brusco ao ouvir o som daquela voz, levou a mão à pistola que trazia no coldre, mas deu um bufo aliviado, largando-a ao notar a insignificante figura que o questionava. Também notou o musculoso felino que acompanhava a ralé e um estranho brilho cintilou fugazmente em seu olhar malévolo. Identificou-se com empáfia:

Parte II

O felino acinzentado avaliou rapidamente a situação. Não havia muito que pensar. Por enquanto faria o jogo do sargento. Seria o mais sensato. Posteriormente, pensaria em alguma saída. O mais importante agora era manter-se vivo e evitar que aquela comunidade felina que tão bem o acolhera fosse sacrificada inutilmente. O sargento pareceu descontrair-se um pouco e observou:
— Você não é apenas uma montanha de músculos sem cérebro como aparenta! Tem a cabeça no lugar e gosto disso! E é também por esta razão que não confio em você! Vou deixar parte do destacamento aqui para “cuidar dos meus hóspedes felídeos.” Cinco dos meus cães vão nos acompanhar. Vamos começar revistando o mangue. Depois a praia e por último a floresta. O que acha, felino?
— Você parece já ter decidido tudo, sargento…! Em minha opinião acho que deveríamos ir logo para a floresta. É o lugar mais provável onde uma felina selvagem se esconderia…mas como quer perder tempo que seja como você quer! – Respondeu Zé Gatão dando os ombros.
— Ainda bem que sabe quem dá as ordens por aqui, cinzento! — Replicou o canino dando um sorriso torto. O sargento deu algumas ordens a seus cães e em seguida ordenou que Bento fornecesse uma canoa grande para que eles pudessem navegar no manguezal. Com tudo resolvido, o policial deu um bufo de satisfação. Então ele e Zé Gatão, acompanhados de cinco cães carregaram a canoa até o mangue, adentrando em suas águas para começar a procurar a gata selvagem fugitiva. Os policiais vestiam um modelo de uniforme que consistia em uma farda de cor caqui, botas pretas, bastante sujas de cano alto, quepe com a insígnia provincial. No uniforme do sargento, se destacavam os galões que identificavam sua patente de comando. Os cães estavam com as vestimentas empoeiradas e um odor forte de suor exalava de seus corpos. Zé Gatão estava ainda de roupas úmidas, com as quais mergulhara no oceano em companhia de Bento e dos pequenos felinos. Vestia uma camiseta branca de mangas muito curtas e um bermudão vermelho. A vestimenta se achava colada a seu corpo massivo, destacando a poderosa musculatura.

Cuidadosamente, boa parte do mangue foi revistada naquela tarde de sol quente. Os caçadores desembarcaram nas áreas secas à procura de rastros, mas nada foi encontrado. Ao por do sol retornaram ao vilarejo. O sargento estava carrancudo e tratou a todos com rispidez, especialmente seus cães. Intimamente, reconheceu que o felino taciturno sempre estivera certo em suas ponderações iniciais. Contudo, jamais admitiria isto abertamente. Era teimoso e obstinado! No dia seguinte revistariam a praia. Zé Gatão o observara durante toda tarde. O cão sabia comandar. Não era um tolo, mas era orgulhoso e meio obtuso em certo sentido. Talvez ali residisse sua fraqueza.

Durante o jantar simples, uma caldeirada de mexilhões e crustáceos diminutos, todos de banho tomado e trajes limpos, se achavam no centro do vilarejo sob a luminosidade de uma grande fogueira, o humor do sargento foi melhorando aos poucos, graças à aguardente que havia trazido. O antes trombudo agente da Lei tentou convencer Zé Gatão a acompanhá-lo em alguns tragos, mas o felino recusou. Bento e alguns dos seus aceitaram o oferecimento do policial e beberam com ele alguns goles daquela boa pinga artesanal. O clima ficou alegre, quase descontraído. Criterioso, o sargento permitiu que seus cães bebessem apenas uma dose. Depois de uns bons sorvos, o feio canídeo começou até a tratar Zé Gatão com familiaridade, como se fossem velhos amigos. O felino foi seco e formal o tempo todo, o que aumentou ainda mais a hilaridade inconveniente do sargento, já tocado pelo excesso de álcool ingerido. Por volta das 22 horas todos se recolheram. Os cães montaram suas barracas de campanha e alguns deles foram escolhidos como sentinelas, revezando-se em turnos de guarda até o amanhecer. Zé Gatão resolveu ser paciente e não tentar nada. O momento adequado para agir chegaria. Além disso, estava curioso em conhecer aquela gata selvagem que o sargento e seus canídeos perseguiam. Quem seria ela? Como seria? Pensando nisso, adormeceu em seu quarto. Desta vez seu sono era extremamente leve.

Ao romper da aurora, o sargento já estava na praia com um destacamento de cães um pouco maior para palmilhar cada centímetro do terreno que não era muito extenso. Além de Zé Gatão, Bento, conhecedor da área ia como guia principal. Os canídeos usavam bermudas caqui, camiseta sem mangas de um verde musgo e os quepes enterrados nas cabeçorras. O felino usava a mesma indumentária do dia anterior e Bento sua costumeira roupa com o chapelão de palha enfiado na cabeça. Os policiais portavam pesados rifles de um modelo antigo que Zé Gatão não via há tempos. Estavam todos descalços, deixando rastros profundos na areia. A manhã estava bem ensolarada, o mar estava manso, as ondas batendo repetidamente sobre os recifes da mesma forma como ocorria desde tempos imemoriais. Caminharam até uma área rochosa bem junto às águas que segundo Bento, possuía uma serie de cavernas escavadas pelo mar ao longo de milênios. O sargento Diógenes bufou aprovadoramente. A felina poderia estar escondida em uma delas. Zé Gatão discordou. O sargento não o levou em consideração e ordenou uma revista completa em cada uma delas. Bento alertou que por volta do meio-dia a maré encheria, inundando a praia e aquelas reentrâncias naturais, transformando-as em armadilhas mortais. Mais uma vez, o sargento não levou em conta esta observação, dando certeza a Zé Gatão de que o cão era mesmo um idiota pomposo. Metodicamente, as primeiras cavernas foram exploradas de fio a pavio.

Não tinham chegado a explorar nem a metade delas, quando Bento avisou que a maré estava prestes a mudar e que era melhor saírem dali para terrenos mais altos. Mesmo se estivessem ao ar livre, na areia da praia correriam perigo no momento em que a água começasse a subir. A contragosto, o sargento ordenou a retirada imediata, levando Zé Gatão a concluir com seus botões que o cachorro não era tão burro, afinal. Já em segurança, todos viram a maré começar a subir com velocidade espantosa. As águas do mar foram tomando a faixa arenosa, engolindo-a! Começou a invadindo as cavernas, deixando-as totalmente submersas. De repente, o sargento deu pela falta de um de seus cães! O estrupício ficara em uma das cavernas e seu urro de terror, sufocado pela entrada da maré na cova em que estava foi como um lamento funéreo nos ouvidos daqueles que já se achavam em segurança nos terrenos mais altos. Soltando um bramido, o sargento quis precipitar-se na água em torvelinho para tentar salvar seu subordinado. Foi contido por Zé Gatão que lhe aplicou uma potente gravata no pescoço, fazendo-o soltar o rifle que tombou barulhentamente no fluido marinho que crescia a olhos vistos.
— Me solta, maldito! O meu cão!!
— Não seja imbecil! Ele já está perdido! Quer morrer com ele?!

Diógenes se debateu forte, sem conseguir sair do aperto que o cingia! Os outros cães e Bento olhavam a cena estupefatos. Passado aquele assomo de desespero inicial, o sargento com o tom de voz mais controlado disse que Zé Gatão poderia soltá-lo. Percebendo a veracidade de suas palavras, o felino libertou o canídeo cujos olhos estavam marejados de lágrimas.

Em silêncio, o grupo retornou ao vilarejo, onde os esperavam como almoço as sobras do jantar. Após a refeição, que ocorreu em um clima assustadoramente tristonho, o sargento Diógenes chamou Zé Gatão em particular para conversar. Foi logo dizendo:
— Por que me salvou a pele? Para você e esses outros felinos melhor seria que eu tivesse morrido!
— Talvez, sargento! Mas eu não podia ficar parado sem fazer nada! Toda vida é preciosa! Até mesmo a sua!
— Eu nunca tinha até hoje encontrado um animal como você! Só posso dizer obrigado! A partir de agora, você e seus amigos felinos não são mais meus prisioneiros! Agora eu pergunto: você me ajudaria de bom grado a cumprir minha missão?
— Encontrar a felina selvagem não é? Agora sou eu que pergunto: sua missão é de vida ou de morte, sargento?
— Em relação à gata selvagem? Na verdade, eu pretendia matá-la, mas depois de tudo que aconteceu, penso apenas em prendê-la e levá-la para ser julgada por seus crimes em minha cidade.
— Está bem. Vou te ajudar a encontrá-la, mas nada de mortes, sargento! Seja o que for que a felina tenha feito, ela merece um julgamento justo. Você como representante da Lei sabe disto melhor do que ninguém.
— Está certo…! Eu vou para junto de meus cães! Perdi um subordinado leal e devemos fazer a ele as devidas homenagens. Você vem?
— Não, sargento. Se é que me entende, este tipo de cerimônia me deprime. Estarei na beira do mangue. Seria bom você depois liberar o Bento e seus felinos pessoalmente. Isto seria justo.
— Seria, cinzento. Eu o farei. – O cão se afastou cabisbaixo. Zé Gatão também se afastou. Estaria o sargento sendo sincero? Só o tempo poderia dizer.

Parte III

O som dos disparos de rifle encheu os ares. Da beira do mangue Zé Gatão escutou nitidamente o estampido dos tiros e o toque ritmado da corneta em homenagem solene ao policial que morrera no cumprimento do dever. A solenidade fúnebre foi feita no centro do vilarejo. Com a voz embargada, o sargento Diógenes falou um pouco a respeito do subordinado morto, enaltecendo suas qualidades profissionais, o bom cão de família, o amigo leal. Uns poucos companheiros falaram. A maioria ficou em um mutismo constrangido. Bento e sua comunidade ficaram ali em um silêncio respeitoso. Quando tudo terminou, Zé Gatão voltou. O sargento foi até ele. Zé Gatão não gostou do estranho brilho que cintilava no olhar do canino nem do que o individuo perguntou:
— O que estava fazendo lá na beira do mangue?
— Pensando. É proibido por acaso? – Respondeu o felino já irritado.
— Ou será que não estava ajudando uma fêmea de sua espécie a escapar pra longe? – O felino cinzento retrucou com sarcasmo no tom de voz:
— Que estranho! Pelo que me consta foi você que começou a busca pelos lugares errados! Se a gata for esperta e eu acho que é, teve um bom tempo para se mandar, graças à sua teimosia e estupidez! – O sargento fez menção de sacar a pistola. O felino cinzento olhou o cão com desdém. Tremendo e se contendo a custo, Diógenes afastou a mão em garra do coldre de sua arma. Sua voz saiu gutural e meio estrangulada: — Desgraçado! Eu devia dar um tiro no meio de seus olhos! Eu tinha que eliminar todas as possibilidades! Nenhum local podia ter sido descartado!
— Mesmo fugindo a toda lógica e custando a vida de um de seus cães! Incrível! Até hoje nunca consegui entender o processo de merda que regula o pensamento de policiais e milicos! E vocês são as assim chamadas autoridades e mantenedoras da Lei e da ordem! Irônico, não acha?

Sem esperar resposta, o felino foi se distanciando. Diógenes ficou parado, arfando, suando e tremendo de ódio. Poderia fuzilá-lo naquele preciso instante pelas costas! Contudo, não conseguia fazê-lo! Não conseguia entender o que o impedia. É certo que precisava do gato! Mas até hoje ninguém que o tivesse afrontado como o outro o fez teria ficado vivo! No fundo, contra todo o seu modo de pensar ele sabia que Zé Gatão estava certo! E era por isso, somente por isso que não conseguia matá-lo!

O clima no vilarejo estava pesadíssimo. O tratamento aos prisioneiros se tornara mais rude. O felino taciturno não havia se iludido com as promessas do sargento. Embora tivessem sido sinceras a princípio, não coadunavam com o temperamento abrutalhado e obstinado que era uma característica recorrente em criaturas como aquela. Desta forma, não causou surpresa ao felino a postura truculenta daquele bando de cachorros idiotas! O sargento convocou uma reunião extraordinária para deliberar o que seria feito dali em diante. Ordenou que todos os habitantes do vilarejo permanecessem em suas casas. No dia seguinte, um destacamento maior de policiais iria vasculhar a floresta por onde os cães e Zé Gatão tinham passado para chegar até ali. O felino taciturno iria rastrear a fugitiva e se certificar se ela estava ou não pelas redondezas. Se estivesse, ela seria caçada e morta sem piedade! Era uma fugitiva e uma assassina! Não haveria clemência! Após esta preleção, o canídeo ordenou que Zé Gatão e os habitantes do vilarejo fossem para casa e sumissem de sua vista. Reforçou a guarda e mandou acender várias fogueiras em pontos estratégicos. Passou a noite em claro a cismar. Zé Gatão também não dormiu. Precisava agir durante a busca à gata selvagem. Tinha que escapar. Era vital preservar seus amigos felinos e se possível ajudar também a fêmea de leopardo branco.

Amanheceu nublado. Um sol tímido procurava vencer a intensa nebulosidade. O mar estava agitado e o fragor das ondas podia ser ouvido à distância. O destacamento policial comandado pelo sargento caminhava lentamente pela floresta em meio à penumbra. Os cães envergavam uniformes caquis, quepes da mesma cor e calçavam lustrosas botas pretas de cano alto. Portavam rifles antigos carregados e nos coldres, pistolas padrão da policia provincial. Zé Gatão ladeava o comandante da tropa. Estava de camiseta preta sem mangas e calça comprida da mesma cor. Também pretas eram as botas de cano curto que usava. O cabelo estava amarrado no habitual rabo de cavalo. Até então o havia deixado solto, mas poderia atrapalhá-lo em caso de luta, por isto, achou por bem prendê-lo. Todos os sentidos do felino estavam em alerta. Enxergava melhor que os cães naquela meia luz. O faro deles era melhor que o seu, mas como eram canídeos de cidade tinham os sentidos meio embotados pela vida civilizada e não perceberiam coisas e detalhes facilmente perceptíveis pelo felino acinzentado. Seu instinto lhe dizia que aquela que buscavam estava perto, embora não houvesse nenhum rastro ou qualquer sinal de sua passagem ou presença. O grande gato sabia que ela poderia ter deixado a região há dois dias. Por que não o fizera? Felinos são seres curiosos e talvez tivesse ficado movida pela curiosidade. Talvez ele como membro da espécie dela tenha atiçado este sentimento. Fêmeas eram ainda mais imprevisíveis do que machos! E se a encontrassem? Como seria?

Um vento frio percorria o ambiente e o farfalhar das folhas produzia um ruído que aumentava a atmosfera escurecida e lúgubre reinante. Zé Gatão estava tenso, embora aparentasse calma. Os cães estavam nervosos. Seguravam os rifles com firmeza, ofegando forte ocasionalmente, as fibras musculares do corpo esticadas e tensas como cordas de um violino. Apesar do frio, bagas de suor escorriam das faces convulsionadas, empapando as fardas, dando uma coceira chata nas virilhas de cada um deles. O sangue correndo rápido nas veias, acompanhado de um martelar do mesmo nas têmporas. Corações descompassados pulsando intensamente. O sargento era o mais tenso de todos. Zé Gatão não se sentia diferente. Nunca experimentara antes tal agitação. Sentia câimbras estomacais que iam e viam. Seu órgão sexual involuntariamente dando sinal de vida e no ar um aroma adocicado, como um feromônio que o atraía inexoravelmente tal qual um imã. Os cachorros evidentemente nada percebiam e o felino tinha sobre si mesmo domínio suficiente para que não notassem a tormenta que rugia em seu íntimo. Mais do que nunca, o lado selvagem do felino taciturno se agigantava dentro dele. Se tomado exclusivamente por este anseio brutal, teria estraçalhado seus acompanhantes de modo que só ele iria encontrar a felina misteriosa que se ocultava naquela mata sombria.

Quase no auge do paroxismo pelas razões já descritas, cada um daqueles indivíduos não estava preparado para o que se deu a seguir. Das sombras da floresta, um silvo baixo pode ser ouvido de modo intercalado. Um a um, os cães caíram como que atingidos por um raio. Só ficaram de pé o sargento e Zé Gatão.

De repente, diante deles, surgiu uma figura impressionante. Era a fêmea de leopardo branco. Seu corpo transbordava de energia viva! Corpo escultural, músculos rijos, divididos e não exagerados. A pele de um branco fantasmagórico, entremeada de manchas escuras circulares como era comum entre os membros de sua raça. A basta cabeleira presa em um rabo de cavalo bem feito. Olhos penetrantes de um verde esmeraldino. Trajava um top azul claro e uma tanga curta da mesma cor. Musculatura abdominal muito bem trabalhada. Calçava sandálias trançadas abaixo dos joelhos de couro escuro, sem salto. Na cinta pendia uma zarabatana artesanal. Em um átimo, o sargento Diógenes tentou apontar o rifle, mas o largou com um ganido de dor. Mais rápido ainda, a felina selvagem atirou um dardo pontudo de madeira no dorso da mão direita do policial. Zé Gatão ficou imóvel e silencioso, à espera. Gemendo de dor, o sargento perguntou:
— E meus cães? Por que não se movem? O que você fez a eles?! – A felina respondeu em uma voz que soou agradável aos ouvidos de Zé Gatão:
— Estão mortos. Curare! Mas a você eu mantive vivo, cachorro! E a você também, gato grande! Podia ter matado os dois!
— Eu é que vou te matar! Desgraçada! Eu…! – A felina o interrompeu:
— Você e seus lacaios estão me caçando há muito tempo! Você que ia me ver todo dia naquele circo maldito! Escarnecer de mim! Jogar frutas podres em mim, junto com aquela plateia impiedosa de animais! – Antes que Diógenes replicasse, Zé Gatão indagou:
— Mas como aconteceu? Como você foi parar naquele Circo de Aberrações? – A felina olhou rapidamente para o felino cinzento, sem tirar a atenção sobre o sargento canino e respondeu:
— Sou nativa de terras muito distantes. Eu vivia em uma aldeia nas montanhas com meus pais. O circo chegou e permaneceu algumas semanas na cidadezinha situada aos pés das montanhas. Eu queria ver o mundo. Fugi de casa e pedi guarida no circo. Havia shows variados e nada ligado a aberrações. O circo ia pelo interior, de cidade em cidade. A dona era uma égua muito gentil que me contratou como acrobata. Eu era muito bem paga. Há um ano ela morreu do coração e seu filho, um cavalo de má índole, transformou o circo maravilhoso de sua finada mãe em um local de tormento e exploração. Pelas ruas pegava os deformados, aleijões e diferentes, fossem machos, fêmeas ou filhotes e os escravizava, tratando a todos como aberrações a serem exibidas em um agora circo de horrores! Um dia, eu matei o cavalo maldito e fugi em busca de liberdade!
— E este pulha veio te caçando! – rosnou Zé Gatão.
— E você o estava ajudando! – Acusou a gata.
— Só porque ele ameaçou matar uma comunidade de pacíficos gatos-pescadores na qual eu estou vivendo.
— Entendo! Eu senti que você não era como ele!
— Vai me matar como matou meus cães, sua maldita?!
— Vou! Só que será mais lentamente!
— Espere! Você não pode…! – Antes que Zé Gatão pudesse fazer algo, em um movimento veloz, a felina atirou um dardo no braço do gato que caiu ao solo de olhos arregalados, mas ainda consciente.
— Não se preocupe. Não é uma dose letal de curare! É apenas uma paralisia temporária para que não interfira! Muito bem, cachorro! Você terá a chance de me caçar! Apenas você! Enfaixe sua mão e dentro de cinco minutos venha no meu encalço! Pegue-me e mate-me se puder!
— Nem tenha dúvida, felina infernal! Vou vingar a morte de meus cães custe o que custar e vou enfiar uma bala em sua cabeça maldita! – A gata não respondeu. Em movimentos rápidos e ágeis se internou na mata escura. O sargento pegou a caixa de primeiros socorros em seus pertences e medicou sua mão ferida, enfaixando-a em seguida. Sacou a pistola com a mão direita, mas segurou-a com a esquerda. Como era ambidestro podia atirar perfeitamente com a mão esquerda. Afastou-se deixando ali no chão um Zé Gatão impotente e imobilizado.

A felina deixou um rastro fácil de seguir. O sargento Diógenes sabia estar sendo atraído para alguma espécie de armadilha, mas confiava em sua perícia com a pistola e achava que poderia atingir mortalmente a sua presa. Mesmo se morresse em meio à refrega, não se importava desde que também liquidasse a gata selvagem.

A caçada então começou! Veloz, a felina estava sempre a um passo à frente do cão. Para piorar, ela gritava na semiescuridão, debochando de seu perseguidor. Sua voz lúbrica ecoando naquele ambiente fantasmal.
— Você é lento demais, cachorro! Não consegue encontrar o próprio rabo! Se você e seus patetas caninos chegaram até aqui foi porque eu os atraí! Como estou fazendo agora! Se eu quisesse vocês nunca teriam me encontrado! Nem em um milhão de anos! Idiota! Idiota! – Aquela voz zombeteira chegava também aos ouvidos de Zé Gatão, tombado de bruços no chão úmido da mata. Inerme, incapaz de mexer um músculo, podendo apenas respirar em haustos rápidos e sibilantes. Iracundo, o sargento corria de pistola em punho. Um berro rouco escapando do peito convulso pela respiração rascante e apressada pelo enorme esforço.
— Sua maldita! Sua desgraçada! Eu vou te matar! Vou beber seu sangue! Vou te destruir lentamente! Quero te ver sofrer! Sofrer! Como eu estou sofrendo! Meus cães! Meus cães! Eu os vingarei!

Guiado pelo som da voz de sua presa, o sargento desceu por uma pequena ravina que dava em um alagado. O canídeo estava cego pelo ódio! As precauções elementares não foram seguidas. Ao descer atabalhoadamente a ravina, escorregou nas pedras soltas e foi precipitar-se ruidosamente naquelas águas paradas de tonalidade lamacenta, logo abaixo. Tentando erguer-se, percebeu com horror que havia caído em areia movediça. Seu bramido desesperado de socorro atroou os ares. Um vulto surgiu e desceu com cuidado a ravina até a beira do alagado fatal! Era a fêmea de leopardo branco. Com um sorriso sinistro, ela se dirigiu ao infeliz canídeo que se debatia no lamaçal, sentindo-se afundar, envolvendo-se pouco a pouco em seu abraço de morte.
— Então, sargento? Que belo fim, hein? Melhor seria se tivesse sido morto mais rapidamente pelo meu curare como os bastardos dos seus cães!
— Maldita! Miserável! Não pense que pedirei clemência!
— Não pede e nem te dou seu grande filho da puta!

A resposta do sargento em agonia foi um uivo longo, desesperado, aterrador, onde se misturavam medo, ódio e frustração. De modo implacável, a lama tragou lentamente o canídeo e seu uivo alucinado foi para sempre silenciado. Apenas malcheirosas borbulhas rebentaram à tona, como únicos sinais de sua presença naquele lodaçal que logo ficou tranquilo e imoto! Uma armadilha mortífera, com suas enganosas águas superficiais. Um chamariz aos incautos.

Zé Gatão sentiu a presença da gata selvagem sobre ele e sentiu seu hálito perfumado, quando ela aproximou os lábios de um de seus ouvidos. O calor daquele hálito eletrizou o corpo paralisado do felino cinzento. A voz da felina era suave e sensual:
— Adeus, gato grande! Um dia talvez nos vejamos de novo e neste dia eu vou querer conhecê-lo melhor! Chamo-me Karenina. Você é um felino de bom coração! Por isto não podia deixar você se interpor entre mim e o sargento! Sei que entende o que é uma vida sofrida! Você é um mestiço e sabe o que é ser diferente. Não me queira mal! — Ela o beijou de leve na boca e desapareceu silenciosamente na meia luz da floresta.

Horas depois, a paralisia desapareceu. Apenas um torpor restou nos membros do felino taciturno. Voltou ao vilarejo e no dia seguinte ele deu adeus a seus amigos, os pequenos gatos-pescadores. A comunidade lamentou e pediu que ele ficasse. Ele agradeceu, mas disse que tinha que seguir seu caminho. Seguiu pela praia arenosa a cismar e desapareceu de vista entre as rochas.

Início: 16/12/15 / Término: 21/12/15.

Originalmente Publicado em:
https://eduardoschloesser.blogspot.com/2016/03/ze-gatao-karenina-um-conto-de-luca.html

Luca Fiuza é Livre Pensador

Eduardo Schloesser, de Recife, PE, é Artista Gráfico, Quadrinista e… Livre Pensador!
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Edson Sesser
Edson Sesser
04/05/2024 19:39

Um dos meus preferidos; texto e arte diretos ao ponto. O final é impactante!

Eduardo Schloesser
04/05/2024 19:36

Gosto demais desse conto; embora a escrita do Luca seja plenamente identificável, aqui as situações e localidades destoam dos demais engendrados por ele. Por este motivo eu pensei em algo diferente para as ilustrações, eu as fiz com caneta esferográfica azul com o mínimo (quase nada) de esboço a lápis e uso de borracha para conseguir um traço mais natural.

Barata Cichetto
Administrador
Responder a  Eduardo Schloesser
04/05/2024 20:31

Até este o meu preferido tinha sido Cloaca dos Mares, mas aqui, como você mesmo pontuou, são mesmo bem diferentes. E você soube mesmo deixar bem claro, num estilo e técnica próprios para ele. Dentre todos é o único nesse estilo. Quanto à escrita do Luca nem preciso comentar, porque ela me conquistou desde o primeiro conto dele que li. Uma bela dupla!!!!!!!!!!!

Luiz Alberto F. dos Santos
Luiz Alberto F. dos Santos
04/05/2024 10:23

Este conto fluiu facilmente. Foi um dos quais eu mais gostei de escrever. O ambiente onde a história se passa foi uma espécie de resgate de uma realidade que vivi na infância, no Rio de Janeiro, mais especificamente na Barra da Tijuca, zona rural nos meados dos anos 60. Portanto, retratei as mesmas praias com sua vegetação natural, as mesmas áreas de mangue. Acrescentei a mata para dar um ar mais agreste, longe das cidades apinhadas e poluídas! Quanto ao enredo é interessante notar que Zé Gatão não é o dono da situação. Não tem a solução dos problemas, mas também não se deixa levar pelas circunstâncias. É paciente, pragmático e estratégico, contrariando a ideia do brutamontes irracional que resolve tudo na porrada! É justamente esta postura do felino que o Eduardo sempre evidenciou em suas publicações que torna o personagem tão atraente. Não é só aquela máxima do Gatão achatando o vilão em cada história. Não que isto não ocorra, mas há algo mais aí! Temos violência, conflitos juntamente com sensibilidade e sobretudo reflexão. Tudo isso reforça que apesar de sua força descomunal e resiliência, o Gatão está sujeito aos mesmos problemas comuns a todos nós.

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