Desenho: Eduardo Schloesser (Colorizado Digitalmente)

06 – Mundos Opostos (Um Conto do Universo Zé Gatão por Luca Fiuza)

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Luca Fiuza e Eduardo Schloesser


Em uma das tantas cidadezinhas de veraneio litorâneas que enchiam a chamada Costa Dourada, Zé Gatão estava trabalhando há algumas semanas como Guarda Vida em uma pequena praia privativa, propriedade de um poodle ricaço que gostava de passar a temporada de sol em sua enorme e dispendiosa mansão de número excessivo e ignorado de quartos. A citada praia era a melhor da região com sua areia fina, de um branco perolado. Ali o mar era calmo de poucas ondas, águas mornas, muito azuis. Apaixonado pelo local, o endinheirado canino logo o comprou, tornando-o um parque de diversões para ele, seus amigos e suas garotas. Eventuais intrusos eram pouco delicadamente expulsos por seu sempre vigilante corpo de seguranças, uns cachorrões feios de origem indefinida, mas impecavelmente vestidos com uniformes pretos com o logotipo da empresa do poodle no quepe e no lado esquerdo do grosso casaco, onde em um coldre interno guardavam pistolas de último tipo, discretamente mostradas a quem tentasse entrar, ousando reclamar por não poder frequentar aquela praia. Na maioria das vezes, a cara feia destes seguranças e uns ocasionais sopapos bastavam para esclarecer as coisas aos insistentes e evitar maiores problemas.

Hora do almoço. Costumeiramente, o felino cinzento almoçava com o poodle e sua turma à beira da praia, mas naquele dia em particular não estava com paciência de ouvir idiotices vazias, suportar o flerte superficial das cachorrinhas perfumadas e principalmente o exibicionismo do poodle rico, só falando de suas posses, de quanto tinha ganhado no Mercado Financeiro e aguentar aquele bando de bajuladores fazendo elogios rasgados à capacidade do sujeito de ganhar dinheiro. O riquíssimo canídeo não gostou de saber que ia perder a companhia do felino, quando este comunicou sua decisão de almoçar na cidade. Apesar de toda a sua empáfia, o poodle gostava de Zé Gatão e admirava secretamente sua independência e nível cultural. O gato era o único dentre todos os outros que não se deixara enfeitiçar pelo fascínio e pela riqueza ostentados pelo empresário. Falava pouco, mas suas colocações eram sempre bem embasadas. O poodle percebia que seu mundo não agradava ao grande gato, mas este nunca fizera nenhuma observação, mesmo se perguntado de maneira direta. Era eficiente em seu trabalho, educado com os convidados e demais empregados. Extremamente discreto. Ótimo profissional. Portanto, a presença do felídeo acinzentado servia de certa forma como um efeito moderador para que o poodle começasse conter um pouco suas bazófias e procurasse melhorar o nível da conversa. Nunca conseguia. Infelizmente, a medida de sua riqueza não era a mesma em se tratando de cultura geral. No entanto, o cão queria beber dessa fonte, e consequentemente, procurava manter Zé Gatão constantemente próximo. Não naquele dia.

O poodle pagava razoavelmente bem. Contudo, Zé Gatão resolveu almoçar em um restaurante mais simples, localizado na periferia da cidade. Estava economizando para comprar uma moto e sair dali o mais rápido possível. Já passara tempo demais salvando cadelinhas afetadas que fingiam se afogar, em meio a gritinhos esganiçados, denotando uma falsa encenação de namorico para supostamente dar certa cor à suas existências de criaturinhas entediadas. Trocou a sunga verde apertada e a camiseta vermelha cavada por uma camisa sem mangas branca, calça jeans de um azul desbotado sem cinto, meias brancas, tênis vermelho e branco de uma marca um pouco cara que ganhara do patrão. Tomou um ônibus na orla e desceu não muito longe do lugar de destino, região mais pobre da cidade.

Entrou. Sentou-se junto à grande janela envidraçada do restaurante. Pediu o prato do dia e uma caneca grande de cerveja estupidamente gelada. O local era simples, mas agradável.

Comeu bem. Muito melhor que a comida cheia de elaborações, decorações e outras delicadezas que aqueles ricaços bobalhões degustavam cheios de não-me-toques. Enquanto comia a sobremesa, um delicioso e simples manjar branco, notou uma cena inusitada na pracinha do outro lado da rua. Em um banco estava sentado um casal. Um boi e uma vaca grandes e gordos. Pareciam estar discutindo. Os mugidos recrudesciam. Dava para ouvir do restaurante. Os eventuais passantes mudavam de direção. Mães e babás aterrorizadas se afastavam levando filhotes que choravam por serem tão abruptamente impedidos de continuar seus folguedos. No restaurante, a clientela se agitava. Zé Gatão olhava intrigado de sua mesa, enquanto terminava sua cerveja.

O enorme boi se levantou e começou a mugir mais alto enquanto espancava a vaca que a cada tabefe oscilava o corpanzil, soltando um vagido de cortar o coração. As pessoas se perguntavam se ninguém ia fazer nada. Um burburinho só, gritos penalizados, mas ninguém movia uma palha para socorrer a infeliz vaca que caíra do banco sob a chuva de tabefes e era pisada no chão pelo boi ensandecido. O dono do restaurante, um urubu velho com uma guimba de cigarro apagada no canto do bico se aproximou e perguntou ao musculoso gato se ele não iria fazer nada.

— E vocês? Há muitos de vocês por aqui. – Falou calmamente o felino olhando para os clientes do local que se acotovelavam para tentar assistir a cena deprimente.
— Você é grande e musculoso e poderá enfrentar aquela bola de gordura! – Grasnou o urubu velho. Murmúrios de aprovação foram ouvidos entre os presentes.

Zé Gatão deu os ombros e ergueu-se lentamente. Sob os olhares assustados de todos saiu à rua. O boi continuava estapeando a vaca que parecia estar semiconsciente. Aproximou-se calmamente do agressor que de tão entretido com a violência que praticava nem percebeu a presença do felino. Prosseguindo sua caminhada, Zé Gatão foi até um orelhão, e discou o número da polícia. Rapidamente os policiais chegaram e se precipitaram sobre o boi agressor. Bateram tanto nele que tiveram que carregar seu corpo desacordado para o camburão, onde o jogaram brutalmente sem muita cerimônia. A cara do infeliz parecia um bife batido, toda arrebentada, dentadura arruinada. A vaca também foi levada para prestar depoimento na delegacia. Zé Gatão voltou ao restaurante, onde foi ovacionado por sua atitude. Irritado, refutou aquelas manifestações de reconhecimento.
— Calem a boca, idiotas! Qualquer um de vocês poderia ter feito o que eu fiz. Vão à merda todos vocês com seus elogios e agradecimentos! – Pagou a conta e saiu dali enojado com o egoísmo e a covardia reinante naquela cidade de extremos.

Luca Fiuza é Livre Pensador
Contato: [email protected]

Eduardo Schloesser, de Recife, PE, é Artista Gráfico, Quadrinista e… Livre Pensador!
https://eduardoschloesser.blogspot.com/
Facebook: https://www.facebook.com/eduardo.schloesser

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Luiz Alberto F. dos Santos
Luiz Alberto F. dos Santos
02/05/2024 8:41

Neste conto, o enredo mostra as diferenças econômicas e sociais entre as classes. Há no texto um maniqueismo evidente.

Barata Cichetto
Administrador
Responder a  Luiz Alberto F. dos Santos
02/05/2024 12:29

Zé Gatão, aprendi, pode ser inserido em qualquer contexto. Ótimo o conto.

Luiz Alberto F. dos Santos
Luiz Alberto F. dos Santos
Responder a  Barata Cichetto
02/05/2024 13:14

Sim, amigo. Eduardo colocou em suas produções pessoais como nos álbuns e nas histórias curtas, o Zé Gatão em aventuras épicas e em situações mais prosaicas do dia a dia. O Gatão representa acima de tudo, o homem comum! Ele enfrenta os mesmos problemas que qualquer cidadão de cidade grande tem que encarar. Ele tem as mesmas inquietações que nos afligem e é esta a característica que nos leva a nos identificar com ele. Seguindo esta cartilha também pude eu explorar esta faceta do felino cinzento. Ele tem princípios sólidos, mas não é um herói. Pode ser até classificado como um anti-herói. Eu pessoalmente, o vejo como um indivíduo como eu e você, com erros e acertos, decisões às vezes controversas. Imperfeito, mas tentando acertar, atrás de seu lugar ao sol! Quase sempre, mal-sucedido!

Barata Cichetto
Administrador
Responder a  Luiz Alberto F. dos Santos
02/05/2024 22:42

“Felino gris” . Nos teus contos, inspirados no Gatão, usas sempre isso. Uma palavra que amo, mas que, infelizmente o desuso tornou desconhecida. Ando por acá, lendo “Memento Mori”, e acuso, como vou atestar, que Edu Schloesser (acho que aceitei escrever). seria, não fosse nascido nesta Ilha de Vera Cruz, um gênio atestado e consagrado. É clara a percepção de que há nele algo pinçado de Crumb, mas que nada em negativo depõe, muito pelo contrário. E mais uma vez repito, e vou fazê-lo até terminar essa saga do que chamei de “ZéGatãoVerso”, ao menos neste site, terminar: sus contos são épicos!

Luiz Alberto F. dos Santos
Luiz Alberto F. dos Santos
Responder a  Barata Cichetto
03/05/2024 10:59

Amigo, Barata. Não só o Zé Gatão, mas penso que o trabalho do Eduardo deveria ser mais visto, analisado e consagrado. Ele deveria poder viver da Arte. Mas não é assim e ele não é o único a ter tal dificuldade, bem o sabemos. As coisas podem vir a mudar após tantos anos de luta? Não sei. Torço para que sim. Eu sempre fui meio sonhador e uma parte de meu ser, crê que pode haver uma reviravolta embora a realidade do mundo editorial diga o contrário. Ainda assim, ele nunca desistiu de sua Arte e trabalha duro em várias frentes. Como você! Verdadeiros baluartes! É por isto que nunca deixo de acreditar na Arte!

Luiz Alberto F. dos Santos
Luiz Alberto F. dos Santos
Responder a  Barata Cichetto
03/05/2024 11:02

E obrigado pelos elogios. Tento dar melhor qualidade textual possível ao escrever meus contos.

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