Velhas Espadas Para Novas Guerras

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Barata Cichetto


Conheço o Áureo Alessandri há uns doze anos, quando tomei conhecimento da sua banda Blues Riders, um trabalho já de muitos anos, mas que como sempre acontece, totalmente desconhecido da maioria, incluindo a mim mesmo até então. A paixão pelo trampo da banda foi imediato, já que eles juntavam duas coisas que sou fã incorrigível: Rock bem tocado e boas letras. A partir daí, acabei fazendo uma entrevista com ele para um programa de rádio que eu tinha, e com o tempo ficamos amigos. Nos encontramos várias vezes, especialmente em shows da Patrulha do Espaço, sendo que num desses, no Manifesto Bar, eles foram a banda da abertura. Passei a acompanhar de perto a Blues Riders, e na Feira da Pompéia, um evento muito mal organizado, me passei por membro da banda para segurar o lugar no palco. E em 2016 os coloquei como headline num evento “Rock In Poetry“, no Sauer Rock Bar, que infelizmente pouca gente compareceu.

Áureo Alessandri, Barata e Walter Possibom - Vitrine do Rock, 2013

Entretanto, o assunto agora não é a Blues Riders, mas a nova banda do Áureo, que se chama La Societá. Confesso que no primeiro momento não gostei do nome não, pois me lembra (e até existe mesmo) nome de pizzaria italiana. (*) Mas como nomes de bandas nunca foram algo tão importante e criativo, tanto no Brasil como lá fora, acabei relevando. (Pense na tradução dos nomes de bandas gringas: Os Portas, Rainha, etc.).

Áureo Alessandri, Barata - Show Patrulha do Espaço

O fato é que quando fiquei sabendo que La Societá tinha ninguém menos que Tibério Corrêa, lendário batera do Harppia e que hoje é luthier também, já me empolguei. O restante do time não conhecia, mas sabendo da capacidade do Áureo em trabalhar com ótimos músicos, fiquei tranquilo, sabendo que dali sairia um ótimo trabalho.

Se minha memória etílica idosa não me trai agora, creio que isso foi em 2020, mas depois fiquei sem notícias tanto da banda, embora eventualmente conversasse com o Áureo. Mas em 2022 começaram a aparecer no Facebook notícias sobre o aguardado trabalho do La Societá: “Gladii veteres nova bella“, que em tradução do latim significa: “Velhas espadas para novas guerras”, o que por si já é bem emblemático, pois especialmente Áureo e Tibério são “velhas espadas” e estão sempre travando novas lutas. Mas como isso foi durante um processo de depressão que eu passava, não dei muita atenção, só tendo mesmo tomado pé do lançamento no final de 2023..

Em Janeiro de 2024, criei um grupo de amigos no Whatsapp, e convidei em especial duas figuras a quem tenho muito respeito e admiração como pessoas e pelo trabalho, que são a Luciane Genez e o próprio Áureo Alessandri. Um grupo pequeno, mas como se diz, seleto. E logo no início o Áureo postou uma música, “O Inferno Foi Libertado“, que tinha justamente a letra sido inspirado num poema da Lu. Quase tive um ataque cardíaco, porque era um Rock visceral, forte, pesado, com uma letra… Bem, nem preciso dizer, porque algo que tenha sido inspirado em algum escrito da Lu só poderia ser no mínimo espetacular. “Abriu-se o inferno / e os demônios saíram / Com seus falos rijos / E bocas horrendas…

Formada por Áureo Alessandri, guitarra; Carlos Falcari, voz; Babú Sucata no baixo, Marcelo Loureiro nos teclados e o Tibério Correa na bateria, a banda faz um Rock básico, mas muito bem executado com riffs marcantes, baixo e bateria pesados e o teclado ponteando e dando brilho à estrutura melódica e rítmica. Nas cinco faixas do disco, todas compostas por Alessandri e arranjadas pela banda, o que a gente escuta é que costumeiramente chamávamos de Rock competente.

Não vou detalhar aspectos técnicos de “Gladii veteres nova bella“. Vou me ater à faixa de abertura, sem dúvida a mais forte e mais pesada do disco, e a que conta com a letra mais foda do disco: “O inferno foi libertado“. A música começa com um trecho de uma composição de Bach, “Jesus Alegria dos Homens“. Desde a primeira audição reconhecia o autor pelo estilo, mas não sabia qual era. Só tive certeza quando perguntei ao Áureo e ele me disse o nome, e acrescentou: “Foi uma sacada pra causar esse desconforto que você sentiu… ‘conheço mas não sei ao certo qual é’. E o mais o curioso dessa música é que a primeira parte é alegre, e a segunda parte (que é a que tocamos nessa faixa) é sinistra e quase ninguém conhece“.

Depois dessa inusitada introdução, entra o teclado de Marcelo Loureiro, quase que soando com um órgão de igreja, e aí o coro come, com o baixo de Babu e batera do mestre Tibério segurando o ritmo, e riffs poderosos do Áureo. A voz de Carlos Falcari é suficientemente forte para sustentar a forma e a melodia, passando a emoção da letra.

Ah, a letra. Conforme disse acima, ela foi inspirada num poema da poeta paranaense Lu Genez, uma das melhores — senão a melhor — escritora que conheço na atualidade. Sua poesia é forte e extraordinariamente bem escrita. Ao lê-la, sentimos que a autora tem uma fúria dolorosa e uma necessidade de expressar suas angústias, sua raiva contida e a impotência diante de uma sociedade confusa e conturbada, dividida e reprimida. Se Lu Genez escrevesse a caneta, decerto rasgaria o papel, de tanta força que imprime em sua escrita. E em “O inferno foi libertado”, todos esses sentimentos são cristalinos, e onde ela coloca toda a sua injúria, em ritmo de fúria.

Um detalhe: a mesma música também foi gravada pela banda Harppia, sendo que os dois discos foram gravados juntos no mesmo estúdio.

Estamos num momento em que muitos decretaram a morte do Rock, especialmente no Brasil, onde por falta de apoio, não apenas da mídia, que prefere sustentar analfabetos culturais em “músicas” sem a menor qualidade, feitas aos quilos não por músicos, mas por produtores e “cantadas” por falsos artistas que nem noção de musicalidade têm. Dentro do mundo do Rock, a coisa é ainda pior, já que quase ninguém quer fazer trabalhos autorais, preferindo se dedicar a bandas “covers” para garantir uma graninha tocando em botecos apinhados de bêbados que só querem saber de ouvir “Smoke On The Water” pela milionésima vez.

Baseado nisso, trabalhos como o da banda La Societá são aquilo que podemos chamar de resistência. “Sortudo é quem viveu os bons tempos do Rock. Hoje é só um monte de escombros carregados nas costas por idealistas sem noção (eu incluso).“, segundo palavras do próprio Áureo Alessandri. Ou como diz os versos iniciais de “Cigano do Rock’n’Roll: “apesar de saber onde estou / A verdade é que eu ando perdido.”

Em tempo: menção honrosa para a frase estampada na contracapa do CD: “Orgulhosamente produzido sem recursos públicos de qualquer espécie.” E assim que se faz um disco de Rock, que costumava ser anti-estabilishment, antes de virar modinha serem paga-paus de políticos de “esquerda”.

23/04/2024

Release:
“Banda de Rock paulistana idealizada e formada no período mais sombrio passado pela humanidade em um século: a pandemia do corona vírus. Com repertório totalmente autoral cantado no nosso idioma, La Societá se distancia do Rock feito no Brasil nas duas últimas décadas e busca sonoridades vintage, que remetem aos anos 70 e 80, sendo formada por veteranos do Rock underground. No início de 2024 a banda lançou um EP com 5 músicas inéditas em formato digital e físico (para aqueles que, como os veteranos da banda, ainda colecionam material físico) e está pronta pra sair pela estrada.”

(*) N.do. E.
Explicação do Áureo Alessandri sobre o nome da banda: “La Societá ou La honorata Societá são designações pra máfia italiana… por isso tem umas pizzarias com esse nome.”

Poesia Original de Lu Genez

Aberto está o inferno, os demônios soltos com seus falos rijos e as babas saliventas.
Ostentam línguas roxas e afiados dentes ácidos,
tomam absinto com coca-cola, lambem os seios das ninfetas bêbadas.
Fazem bastardos filhos de proveta em barrigas de aluguel,
enquanto dão entrevista ao talk show da moda, tiram selfie, e sambam na avenida central.
Nenhum avanço de paz no paraíso dos homens de dois pés.

Na sarjeta, dorme um bebê com roupas azuis, a espera de redenção.

O inferno está aberto, as portas de chumbo arregaçadas
E ao assanho das asas dos anjos malditos estão todos os plebeus de sangue,
Os sexos expostos e o gozo que escore quente entre as pernas libidinosas
As heresias que cercam a mesa santa, fazem parte do cardápio dominical.

Tranquem as virgens, rezem o terço, acendam brancas velas votivas, vedem as frestas das janelas,
Os ares sulfurosos causam náuseas e arrependimentos.
Que se queimem os pecados, antes do fatídico acerto.

O inferno sempre amanhece nos concretos frios nas cidades de ninguém.

Letra de La Societá

Abriu-se o inferno
E os demônios saíram
Com seus falos rijos
E bocas horrendas

Tomando absinto
Chupando ninfetas
Fazendo bastardos
Filhos de proveta

Eles dão entrevistas
E até autografam
O mal tem fã clube
Que cultua a desgraça

Não há paz que seja possível
E nem há paraíso
Foi tudo queimado
agora tranquem as virgens
e rezem seus terços
O inferno foi libertado

Abriu-se o inferno
Portas escancaradas
E os demônios devoram
No assanho das asas

Bebendo sangue
Tirando selfies
Escorrendo o gozo
Entre pernas hereges.

La Societá
“Gladii veteres nova bella”
2023

1 — O inferno foi libertado
2 — Salve-se quem puder
3 — Cigano do Rock’n’Roll
4 — Meu Nome é Ninguém
5 — O forasteiro

Tibério Correa (Harppia): Bateria
Babu Sucata (ex-Percy’s band): Baixo
Áureo Alessandri (ex-Blues Riders): Guitarra
Marcelo Loureiro: Teclados
Carlos Falcari: Voz
Participação de Aya Maki, Daniel Gerber e Junior Meira
Produzido por Junior Meira
Logo “La Societá”: Cezar “Heavy” Bastos

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Email: [email protected]

Barata Cichetto, 1958, Araraquara – SP, é poeta, escritor. Criador e editor do Agulha.xyz, e Livre Pensador.

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25/04/2024 20:01

[…] gostar muito dessa língua, pois seu último trabalho musical também tem o nome em latim “Gladii veteres nova bela.” (Velhas espadas para novas […]

Áureo Alessandri
Áureo Alessandri
23/04/2024 16:10

Meu querido Luiz Carlos “Barata” Cichetto!
VocÊ sabe que fico com aquele nó na garganta cada vez que vocÊ escreve algo relacionado a mim.
É difícil segurar a emoção quando alguém tão talentoso na escrita me menciona de forma tão honrosa.
Mas mais do que a alegria de ler a resenha e de ver a letra ao lado do poema da genial Lu Genez – ela poeta e musa ao mesmo tempo – mais que isso tudo foi lembrar dos episódios malucos da Feira da Pompéia (tomei tanta chuva que tive que tocar sem camisa), dos shows do Patrulha (o do Manifesto foi onde conheci o Walter Possibom), o show no Sauer Bar (onde pude ver juntos dois dos poetas vivos que mais gosto: Meu tio Ibrahim e você).
Cara! É muita história pra lembrar de tudo e tudo tão legal de lembrar!
Obrigado, my friend.
Guardarei essa resenha no coração.

Barata
Administrador
Responder a  Áureo Alessandri
23/04/2024 19:46

Meu amigo, você é uma daquelas pessoas que logo que a gente conhece parece que é amigo a vida inteira. Há várias explicações para isso, mas acredito que seja a convergência de ideias e forma de pensar. E quando conheci, além do seu lado músico e letrista, seu lado escritor, isso se tornou mais forte.
Pena que do Manifesto eu não tenho fotos, e da Feira da Pompéia e do CCSP eu tenho, mas como tem pessoas indesejáveis na foto não coloquei.
Enfim, como são sempre minhas “resenhas” não é sobre um disco, mas sim sobre as pessoas nele envolvidos. E não imagina a surpresa maravilhosa que eu tive quando você, no início do grupo falou sobre ter usado uma poesia da Lu Genez, que é uma pessoa maravilhosa, e uma poeta mais ainda.
(PS. Quase apaguei essa postagem, porque criei outra com outro nome para poder compartilhar na merda do Facebook)

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