Arte por Barata

Quando Uma Música Pede Para Aguentar Firme

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Genecy Souza


Em meio a uma crise em que tudo parece perdido, uma música serve de alento.

30 de Novembro de 2022 foi um dia particularmente ruim, certamente o pior do ano, politicamente falando. O principal tema dos muitos que permearam o debate público, não foi outro que não a corrida ao Palácio do Planalto, afinal de contas, a sociedade estava em meio a um fogo cruzado de natureza ideológica envolvendo dois personagens: de um lado, o presidente Jair Bolsonaro, representante do conservadorismo e da direita, em uma busca frenética pela reeleição; e do outro, o ex-Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva, vulgo Lula, recém libertado da prisão devido a manobras judiciais engendradas, sobretudo, nos gabinetes inexpugnáveis e indevassáveis do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Supremo Tribunal de Justiça (STJ), e do Superior Tribunal Federal (STF). Tal qual Jair Bolsonaro, Lula também estava metido em uma busca frenética pela sua terceira eleição ao cargo de Presidente da República. Na prática, a campanha eleitoral fora transformada em um vale-tudo nunca antes visto. E nesse vale-tudo, valia até mesmo as muitas passadas de perna nas leis, sob as vistas grossas das entidades fiscalizadoras, cujo objetivo era eliminar do solo pátrio, seja por meios legais e ilegais, a “extrema-direita” e o “fascismo” liderados por Jair Bolsonaro e seus apoiadores.

Mesmo antes da data do início da campanha eleitoral, os embates entre Jair Bolsonaro e Lula já estavam em fogo alto. A essa altura, a sociedade brasileira estava irremediavelmente dividida, na base do “nós contra eles”. O principal campo de batalha de atos e ideias eram (e ainda são) as redes sociais, para desespero de setores importantes da grande imprensa, sobretudo das Organizações Globo, dos centenários jornalões Folha de São Paulo e Estadão, devido a perda do seu domínio sobre a informação. A propósito, o controle das redes sociais era (e ainda é) um dos cavalos de batalha de Lula e da Esquerda em geral.

Naquele domingo em que se realizaria o segundo turno das eleições, eu e milhões de eleitores se dirigiram às suas seções eleitorais para exercer o direito de escolha. Ou, não escolher nada, lavar as mãos, entregar nas mãos de Deus. Nesse dia havia medo e raiva no ar e polícia nas ruas, pois tudo podia acontecer. Os institutos de pesquisa mentiam, para mais ou para menos, recaindo sobre eles uma desconfiança do tamanho do Brasil. Ao mesmo tempo, as agências de checagem dos fatos checavam apenas o que lhes interessava, bem como aos que as pagavam. Já se percebia àquela altura que o candidato Jair Bolsonaro era um elemento visado por aquilo a que se dá o nome de O Sistema, de maneira que tudo, ou quase tudo, foi feito para prejudicá-lo.

Foto: AGF Advice

Registrado o meu voto, voltei para casa. Minha tensão era alta, devido ao cenário de incertezas que se desenrolava há meses. Nessa condição não consigo me concentrar em nada, pois não adianta ler um livro, assistir a um filme, ou qualquer atividade similar que distraia a minha atenção. Então, decidi me desconectar do noticiário até a hora do resultado das apurações. Entretanto, e apesar de tudo, eu precisava ocupar a minha mente com algo, enquanto as apurações ocorriam.

Como eu trabalhava na ocasião em regime de home office, resolvi adiantar algumas tarefas do escritório. Para ajudar no meu “desligamento temporário” dos noticiários, acessei a plataforma musical Deezer no meu telefone celular. Pus os fones de ouvido, e selecionei uma playlist aleatória de soul music, uma das minhas paixões em termos de música desde a minha adolescência. Geralmente não recorro a playlists, e escolhi a primeira entre as muitas que o Deezer oferecia. Nem me preocupei em consultar os nomes das músicas, eu só queria ouvir música de primeira, e esquecer, ao menos por algumas horas, o caos que lá fora ocorria. A estratégia funcionou.

A playlist, conforme observei, só tinha mesmo músicas de primeira qualidade, desde standards até obscuridades, e artistas que eu não conhecia. Ícones como Marvin Gaye, Temptations, Aretha Franklin, Barry White, Lou Rawls, Teddy Pendergrass, Gladys Knight, e muitos outros, se alternavam com nomes que realmente desconhecidos para mim. Enquanto o desfile de hits se desenrolava, uma música simplesmente roubou a minha atenção da tarefa que eu executava.

Uns toques de bateria e um pequeno solo de órgão, secundado por frase declamada por um coral feminino, e com auxílio da bateria e de um baixo elétrico, anunciava o cantor dono de uma voz macia, proferindo palavras bem pausadas, claras, reconfortantes. O modo como ele interpreta a música dá a impressão que ele está batendo um papo com o ouvinte. Não sei dizer se o cantor fumou, como diria Tim Maia, uns bauretz, nas seções de gravação do álbum, mas o cara canta de modo muito relaxado, tranquilo, sem pressa, mesmo quando ele reforça uma ou outra palavra em um tom maior. Quanto às garotas do coral, my God do céu! O que é isso? Embora não fosse a primeira que eu ouvia aquele tom de vozes femininas, a combinação delas com a voz do cantor é algo que, em uma análise exagerada, só pode ser coisa de Deus. Como se não bastasse, a música dura mais de oito minutos. Para quem está habituado a ouvir músicas longas por conta do rock progressivo, isso é como mamão com açúcar. Se fosse mais curta, tipo padrão rádio, certamente ela não teria o mesmo efeito. Enquanto teclava minha tarefa, repeti a música umas dez vezes, até que tive que interromper o trabalho, para saber do que se tratava aquele absurdo sonoro.

O cantor chama-se Mike James Kirkland, nascido em 1949, no estado do Mississippi, e o nome da música, Hang On in There, do álbum autointitulado, lançado em 1972. Ato contínuo fui desencavar a letra, tamanha era a minha curiosidade, para saber qual é o papo do Mike. Também recorri ao dicionário, para entender o sentido do termo Hang On in There. Procurei a tradução oficial da letra da música, mas sem sucesso. Entretanto, localizei-a a partir de um cover feito por John Legend, em seu álbum Woke Up!, de 2010.

Hang On in There significa aguente firme; persistir; não desanimar ante as dificuldades; aguentar firme, pois tudo há de melhorar.

Diz Mike James:

“Sempre que as coisas parecerem difíceis de suportar.
Não desista. Aguente firme.

Não há tempo,
Não há tempo para tristeza.
E nós não temos tempo, não temos tempo.
Ah, tempo para ficar triste.
E talvez o mundo não seja o que poderia ser.
Mas entender o porquê é conhecer a realidade.
Ah, não desista (aguente firme).
Ah, eu disse: “Aguente firme” (aguente firme).

Quantas vezes você ouviu sua mãe e seu pai?
Diga, oh, criança, eu nunca tive isso tão bem.
Eu quero dizer obrigado, obrigado pelo começo.
Porque no fundo de minha alma, sei que você fez tudo o que podia.
Eu sou apenas uma parte de seus sonhos, isso eu sei.
Mas farei tudo o que for possível para que isso cresça.
Ah, não desista (aguente firme).
Eu disse para você aguentar (aguentar aí).

Ah, agora diga que amanhã você acordou um rei.
Agora me diga como você consertaria tudo?
Você anda por aí reclamando de como as coisas são.
Mas o que você acrescentou a este mundo até agora?
Dê uma olhada em sua mente e veja qual é a resposta.
E me diga o quanto você deu.
Ah, não desista (aguente firme).
Eu disse: “Aguente firme” (aguente firme).

Ainda há muitas coisas pelas quais viver.
Um filho, um amigo e uma esposa.
Todos eles querem compartilhar sua vida.
Isso não é o bastante para que você queira continuar.
Aguente firme, aguente firme (aguente firme aí).

A placa dizia “America, love it or leave” (América, ame-a ou vá embora).
E além disso, eu não quero e você não pode me fazer amar

Tenho amigos demais, que perderam seu sangue,
Tenho muitos parentes aqui, nascidos nesta terra.
Portanto, você não pode me obrigar a ir embora.
Eu digo que este é o meu país e você não pode me fazer ir embora.
Você não pode me fazer amar da maneira como me trata.
E você não pode me fazer amar a maneira como me bate.

Aguente firme, eu vou aguentar.
Não importa o que você faça ou diga.
Só quero que você saiba que não pode me afastar.

Eu vou continuar pendurado.
Não vou jogar minha mão para o alto.
Não vou jogar minha mão para o alto.

Não podem me expulsar de minha terra natal.

Se a fumaça dos carros e tantas vidas nós perdemos.

Mesmo assim, não importa o que aconteça, eu vou me segurar”.

Letra em Inglês:

Whenever things seem hard to bare
Don’t give up. hang on in there

There ain’t no time,
No time for sorrow.
And we ain’t got time no time
Ah time to be sad.
And maybe the world ain’t what it could be
But to understand why is to know reality
Ah don’t give in (hang on in there)
Ah i said hang on (hang on in there)

How many times did you hear your mom and daddy?
Say oh child i never had it so good
I wanna say thank you, thank you for the start
Cause deep in my soul, i know you did all that you could
I’m just a part of your dreams this i know
But i’ll do what ever possible to make this thing grow.
Ah don’t give in (hang on in there)
I said hang on (hang on in there)

Ah now say tomorrow you woke up a king
Now tell me just how would you fix everything?
You walk around complaining about how things are
But what have you added to this world so far
Check out your mind, and see what the answer is
And tell me how much did you give
Ah don’t give in (hang on in there)
I said hang on (hang on in there)

There are plenty of things still left to live for
A child, a friend, and a wife
They all want to share your life.
Ain’t that enough to make you want hang on
Hang on, hang on (hang on in there)

The sign said “america love it or leave” well has it really come to that?
And beside, i don’t want to and you can’t make me love

I’ve got too many friends, that have she’d their blood,
I’ve got too many relatives here born on this land
So you can’t make me leave
I say this is my county and you can’t make me leave
You can’t make me love the way you treat me
And you can’t make me love the way you beat me.

Hang on in there, i’m gonna hang on
No matter you do or what you say
Is just wanna let you know you can’t drive me away

I’m gonna ay hang
I’m not gonna throw up my hand
I’m not gonna throw up my hand

Any you can’t drive me from my home land
If the smog from the cars and so many live we have lost

Still no matter what i’m gonna hang on

Em uma análise sintética, pois uma música pode produzir uma série de interpretações. Hang On in There trata da situação social nos EUA na transição da década de 60 para a de 70, em razão dos problemas políticos ligados à Guerra Fria, à corrida armamentista, à Guerra do Vietnã, ao desencanto do movimento hippie, entre tantos outros. É uma reflexão sobre a vida e um conselho para aguentar firme, não se render às dificuldades; ter paciência, pois os tempos turbulentos vão passar em algum momento, de maneira que as coisas vão mudar para melhor. Não há ser vivo que não tenha passado por uma fase difícil ao menos uma vez na vida; alguns sucumbem, outros resistem. Tomei posse da música e a trouxe para o Brasil do século 21, pois há nela uma similaridade incrível com os tristes acontecimentos de agora.

De tanto ficar preso a Hang On in There, praticamente esquecido do trabalho que estava fazendo e, claro, do resultado das apurações. Acessei o noticiário para conhecer o vencedor do pleito. Sim, Jair Bolsonaro perdeu para Lula por uma pequena diferença de um pouco mais de dois milhões de votos. Não ouvi o barulho de gritos, foguetório, buzinas, risos, música. Nada. Analistas políticos interpretavam o resultado puxando a brasa para a sardinha ideológica de cada um. Enfim, “o amor venceu”. Um misto de raiva e frustração tomou conta dos eleitores de Jair Bolsonaro, que não consideraram a vitória de Lula como resultado de um jogo limpo, não obstante a insistência do TSE quanto a segurança das urnas, tão questionada pelo candidato derrotado, bem como de grande parte dos eleitores, sejam eles simpáticos ou não ao Presidente Bolsonaro. A propósito, duvidar da segurança das urnas passou a ser crime passível de prisão.

A vitória de Lula não desceu fácil, de modo que motivou os partidários de Bolsonaro a acampar em frente aos quarteis, na expectativa de uma intervenção das Forças Armadas, no intuito de invalidar o resultado das eleições, por entenderem que houve fraude. Todo esse movimento resultou no badernaço de 8 de Janeiro de 2023. O resto é história. Naquela noite/madrugada não consegui dormir, tamanha era minha indignação. E não foi pela derrota de Jair Bolsonaro, e sim, pelo retorno de Lula ao Palácio do Planalto, o que foi um retrocesso fenomenal, graças aos isentões, à Rede Globo, aos nordestinos clientes do Bolsa Família, e a todos os mecanismos empregados contra o candidato da “extrema-direita”, como se veria nos meses seguintes à posse de Lula. Todos os feitos positivos do governo derrotado seriam deixados de lado, desfigurados ou desfeitos. E assim aconteceu. Ao mesmo tempo, velhas práticas políticas voltariam a infernizar a vidas dos brasileiros, inclusive àqueles que fizeram o “L”. O amor voltou, mas carregado de ódio e desejos de vingança.

Naquela noite/madrugada de 30 de Novembro/1º de Dezembro em claro, indignado e imaginando como seriam os quatro anos de um novo/velho governo petista, as vocalistas de Mike James Kirkland repetiam e repetiam Hang On in There como um mantra, pedindo para eu aguentar firme, resistir, ter paciência para esperar uma virada de jogo em algum momento. Há na história da música popular toda uma série de canções capaz de nos fazer entender situações complexas, sejam de natureza pessoal, íntima, ou de caráter mais amplo. Sabe-se que a música tem o poder de mudar vidas, ou de dar um sentido a elas. Tudo é uma questão de percepção. Hang On in There, conforme percebi, também possui essa premissa. Obviamente, Kirkland talvez jamais perceberia que muita gente se ligaria na mensagem passada por seu clássico, haja vista os comentários que li de ouvintes. Aguentar firme é o recado.

Quase um ano e meio após aquele 30 de Novembro, vejo que o jogo começa a mudar contra o ex-presidiário e toda a casta que o ajudou a reocupar a cadeira presidencial. O amor trouxe de volta a censura, a insegurança jurídica, a perseguição a oposição, a reestatização de empresas estatizadas, a aproximação com ditaduras, o envolvimento em assuntos externos, a tentativa de controle das redes sociais, e tantas outras mazelas de um governo de esquerda travestido de democrata.

A voz macia de Mike James Kirkland me pede para aguentar firme, pois essa onda ruim vai passar. O jogo está mudando.

Resistirei.

Mike James Kirkland nunca conheceu a fama, e foi redescoberto há alguns anos. Seus três álbuns lançados em 1972, 1973 e em 2014 conquistaram novos ouvintes, inclusive este escriba.

Foto: The Audio DB

Genecy Souza, de Manaus, AM, é Livre Pensador.

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