O Perdedor

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Eduardo Schloesser


Macedo era um merda, um perdedor que cultivava secretamente a ideia de matar a esposa. Tinha trinta anos e enquanto ficava debruçado sobre o mesmo balcão da tabacaria onde trabalhava ao longo de quatro anos desde o acidente que limitou sua vida, ele passava o tempo imaginando um sem número de modos de tirar a vida daquela companheira que outrora era tão dedicada e amorosa, mas no presente, indiferente e mal humorada. Tiro na cabeça, bem na nuca, no preciso momento em que entra em casa e ela nem se dá ao trabalho de olhar para ele. Outras vezes imagina estar degolando-a quando ela na cama dorme a sono solto sem nem perceber que ele está ali ao lado. Ela era uma bela mulher, professora de nível fundamental, sempre comendo sozinha em frente à TV, peidando e reclamando de cefaleia. Era como se ele morasse só na pequena casa que ficava nos fundos da tabacaria.

A vida de Macedo nem sempre fora este marasmo, jovem, bonito e inteligente, foi um prodígio na escola de música onde desde cedo mostrou ser um virtuoso no violão flamengo, não gostava de pop ou rock, seu sonho era integrar uma filarmônica e escrever suas próprias peças. Tudo apontava para isto até que conheceu Isabel, sua primeira e única namorada e dali a pouco tempo, esposa. Ela, bem mais extrovertida, vivia tirando-o dos estudos para aproveitar a vida. Acampamentos, canoagem, montanhismo e essas coisas. Foi numa destas que aos vinte e cinco anos sofreu uma queda feia e teve inúmeras fraturas do lado esquerdo, só no braço foram quatro, com uma séria lesão num tendão do indicador que o tirou definitivamente do sonho de ser destaque no violão. Poderia não tocar mais tão bem, mas nada o impediria de escrever uma sinfonia para o instrumento, mas a partir daquele acontecimento algo mudou em seu interior, travou seu talento natural, e embora as pessoas o vissem com o mesmo semblante bonito e sorridente de outrora, em seu interior ele se tornou amargo, rancoroso, culpando intimamente Isabel por sua desdita, esperando o dia em que um ato insano como um assassinato com requintes de crueldade pudesse liberta-lo da prisão, onde ele, e só ele, se via trancafiado.

Imerso numa depressão que muitos julgavam justificada, abandonou a música e coisas relacionadas, demonstrando apatia por tudo.

O sogro, uma boa pessoa, o colocou para tomar conta de uma tabacaria de sua propriedade, achando que assim ele teria seus próprios recursos para ir tocando a vida até que estivesse disposto a alçar voos mais altos. No princípio, os diversos aromas de fumo até lhe agradavam, trazendo um aconchego misterioso no meio do mar de revolta que sentia por tudo e por todos, mas com o passar do tempo aquilo também simbolizaria seu túmulo, uma vez que sabia que nunca sairia daquela vidinha de vendedor de cigarros e charutos.

Ele simpatizava com o sogro, um baixinho que mesmo aos sessenta anos exibia um físico musculoso de fisiculturista. Era endinheirado e dado a contar piadas sujas, vivia reclamando da mulher, afirmava que era uma megera que o repudiava, ela vivia dizendo que ele só pensava em sexo, o que era verdade. Para distrair a cabeça aquele homem pegava seu veleiro e passava várias semanas no mar, vivia de uma renda que Macedo nunca soube exatamente de onde vinha; ele não precisava prestar contas dos rendimentos da tabacaria, desde que não deixasse faltar nada para a filha e que cuidasse de Kratus, o imenso rottweiller que ficava no quintal da casa. Ele não suportava o cão, mas fazia seu papel. Todos os dias colocava a focinheira e levava o imenso e arredio canídeo negro para passear, limpava seu covil e o alimentava como a um filho. O animal gostava dele, praticamente urinava de prazer ao velo pela manhã. Tinha instantes em que ele ficava selvagem ao extremo, latindo ao ponto de escumar a boca. Macedo demorou para perceber que esta reação era uma resposta a um determinado aroma de fumo. Toda vez que um cliente vinha comprar aquele tabaco e acendia seu cachimbo, o bicho se transformava e parecia que derrubaria a cerca.

Como tinha uma compleição franzina, Macedo tinha sido assaltado a caminho do hipermercado próximo à sua residência três vezes, parecia ser alvo fácil para as “hienas” que infestavam aquele bairro antigamente tão seguro e calmo, fruto da precária política de segurança pública de uma prefeitura corrupta. Fora abordado sempre pelo mesmo meliante, um indivíduo mulato, careca, magro, faltando dois dentes frontais, com tatuagem de cadeia nos braços. Na primeira vez, o bandido, a pé, lhe apontou um trinta e oito e surrupiou-lhe o relógio e a carteira, apenas subtraiu o dinheiro e devolveu a bolsa de couro atirando-a com toda força no rosto de Macedo. Na segunda vez o biltre vinha de bicicleta, parou ao seu lado e apenas levantou a camisa mostrando a arma na cintura. Desta vez levando seu celular e o dinheiro para a mercearia. “Tu nunca me viu rapá”, e desferiu-lhe um violento tapa na boca, ato contínuo arrancando com a bike a toda. Na terceira vez o malaco nem se deu ao trabalho de mostrar a arma, levou o dinheiro e a sacola com as compras. Ao relatar os incidentes em casa só recebeu o olhar indiferente de Isabel.

Macedo temia sair de casa sem levar Kratus, mas nem sempre podia fazê-lo. Por duas vezes tinha visto o mesmo assaltante passar de bicicleta em frente ao seu estabelecimento, outra vez vira-o na fila da padaria, logo à sua frente, apavorado, tentou se esconder, mas o salteador parecia tranquilo, alheio a tudo, como se nunca o tivesse visto na vida.

Certa tarde, imerso em seus pensamentos sombrios, não prestou atenção à pessoa que entrava na tabacaria, “Tem ‘róliudi’ aí ô chefia?” Ao olhar para o rosto de quem lhe perguntava, quase caiu de costas, tratava-se do homem que o assaltara três vezes.
“Que foi rapá? Viu um fantasma? Tem róliudi ou não?”

Macedo tentou se recompor depressa.
“Hollywood? N-não temos….”
“E Malboro?”
“T-também não.”
“Porra, tu não vende cigarro nesse caralho?”
“É… não este tipo de cigarro. Nossos produtos são importados, vendemos charutos e cigarrilhas.”
“Sei, tem algum com sabor de menta aí?
“T-temos este aqui.” Macedo mostrou-lhe uma pequena embalagem de cartão prateado.
“Quanto é a bagaça?”
“Cinquenta e dois reais.”
“Cinquenta e dois reais?!? Tá maluco mano? Isso é roubo! Hei, num te conheço de algum lugar?”

Sem saber o que responder, Macedo engoliu seco, o marginal certamente não se lembrava dele.
“Tem nada mais barato não? Assim, uns cinco paus? Tô no veneno de fumar alguma coisa!”
“É, deixa eu ver…” O marginal deu-lhe as costas olhando a variedade de tabacos na vitrine à esquerda, neste momento Macedo divisou embaixo do balcão um aparelho de eletrochoque que seu sogro lhe deu, de uso exclusivo da polícia, exatamente para o caso de algum assalto. Um pensamento negro se desenhou na sua mente e ele começou a tremer e suar de nervosismo.

“Tá passando mal aí chefia? Te incomodo?”
“N-não, não é nada, é…é minha úlcera, hoje tá me atacando, mas vai passar.”
“Sei, toma um anti-ácido aí, com essas coisa num se brinca. Bem, já vi que isso aqui é loja de burgueis, tem nada pra mim aqui não, vô nessa.”
“Espera, tenho algo ali em cima. É coisa fina e custa apenas cinco reais.”
“Onde ?”
“Ali, bem acima dos charutos. Você que é alto poderia pegar pra mim, por favor?”
“Tá, é bom que seja coisa boa mesmo…”

Enquanto o mulato ficava de costas para ele tentando alcançar o maço de cigarrilhas, Macedo aproveitava uma oportunidade que nunca mais apareceria e rápido como um gato pegou o aparelho, ligou-o, atravessou o balcão e eletrocutou o velhaco no exato instante que ele se voltava. Ele tombou ao solo estrebuchando com espasmos, da sua boca saía uma saliva grossa, porém diferente dos filmes, ele não perdeu os sentidos, mas fez menção de se levantar.
“C-ca-caralho…que qui tu feiz.. mano..? Ficou louco?

Macedo, com um surpreendente sangue frio, aumentou a voltagem e aplicou-lhe novo choque, tendo o cuidado de não tocar nele. O cara deu um urro e começou a tremer, porém mais uma vez não tinha perdido a consciência, mas parecia fraco demais para oferecer resistência. Pensou em chamar a polícia, contudo era questão de tempo até o marginal estar de novo nas ruas e voltar para matá-lo. Desperto com o grito do patife, Kratus começou a latir no quintal. Macedo não pensou, pegou o pote com o fumo que irritava o cão e despejou o tabaco fedorento no pescoço do assaltante, em seguida arrastou-o pelas bermudas encardidas em direção ao covil, mal abriu a portinhola e o rottweiller cravou as poderosa mandíbulas no rosto do malandro, que ainda consciente, gritava como um porco no abate. Em poucos segundos estava morto, com a cara e o pescoço totalmente dilacerados.

O jovem voltou para a loja ofegando. Trancou a porta para que não aparecesse algum cliente e discou o 190, relatou o assalto informando que o bandido tentou fugir pelo quintal e fora atacado pelo cão. Enquanto aguardava as autoridades guardou o aparelho vingador. Olhou pela janela nos fundos da loja e viu o enorme cachorro negro sentado ao lado do cadáver lambendo o sangue da bocarra. A carnificina parecia tê-lo acalmado.

Macedo sentia-se estranhamente leve. Já não tinha desejo de assassinar a esposa, era hora de virar o jogo e mostrar que ele não era um bosta. Ela veria que ele era um homem de verdade.
Pegou o telefone e discou um número:
“Alô? Por favor, poderiam me informar o preço de uma Viola Alhambra Clássica importada?”

Eduardo Schloesser, de Recife, PE, é Artista Gráfico, Quadrinista e… Livre Pensador!
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Genecy de Souza
Genecy de Souza
31/03/2024 9:51

Muito bom o conto. Creio que daria um bom roteiro de filme.

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