Arte by Barata

O Encontro do Saudosismo Com a Ingenuidade e o Desapontamento

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Genecy Souza


Não sou saudosista.

Bem… Já não estou mais tão seguro quanto a esse posicionamento. Na condição de refém dos fatos que se encavalam e se acumulam devido à alta produção das mentes que, na certeza de estarem certas, cometem toda sorte de erros e, o que é pior, todos estão condicionados a aceitá-los como verdades absolutas.

Retrocedo um pouco no tempo. O meu tempo.

Desde o dia em que conquistei o direito de pensar, falar, agir e decidir por mim, o substantivo masculino ‘saudosismo’ foi previamente banido, não só do meu vocabulário, mas da minha maneira de perceber o mundo ao meu redor, com suas belezuras e suas feiuras. Isso foi lá nos anos 1980 do século passado. Já faz tempo. Talvez eu tenha decidido relegar o saudosismo à proscrição de forma inconsciente, pois, o que havia antes da minha chegada a este mundo era pior. O meu bairro tinha rede elétrica, mas todo o resto de confortos urbanos, não. E algumas famílias, de tão pobres que eram, não possuíam essa comodidade urbana, e, ato contínuo, a televisão.

Naquele tempo, e ainda vivendo em um meio em que muitos tinham o mínimo para viver – alguns, até menos que isso –, um simples televisor preto e branco de 14 polegadas comprado em duzentas prestações garantidas por um avalista, e que precisava de uma antena externa e dois chumaços de Bombril nas pontas das antenas telescópicas abertas em ‘V’, para melhorar a qualidade da imagem, tínhamos o mundo em nossas mãos. Bem… Achávamos que tínhamos, pois não conhecíamos outro. O nosso universo era muito simples. Então, a televisão chegou e começou a mudar tudo, mesmo não sendo “via satélite”. As novidades fresquinhas chegavam com duas, três semanas de atraso.

Aquele rádio com imagem era o centro das atenções. As emoções das novelas xaroposas induziam todos ao debate sobre a personalidade dos personagens; à torcida pela vitória dos bons sobre os maus – mas só nos dez capítulos derradeiros –. As séries norte-americanas, jocosamente apelidadas de ‘enlatados’, vinham logo em seguida. Depois, o futebol, os desenhos animados e o noticiário. A televisão alargou nossas fronteiras. Já no campo da política, esse era um assunto distante. O regime militar botava pra quebrar, mas não estávamos nem aí. Terrorismo, guerrilhas, assaltos a banco, denúncias de tortura, censura, sequestros e greves nas cidades brasileiras não nos afetavam, pois não nos diziam respeito. Guerras mundo a fora eram coisas dos gringos. O Vietnam era em Marte; Biafra em Urano; a Palestina em Saturno. Além das novelas, quem dava as cartas eram o Silvio Santos, o Chacrinha, o Flávio Cavalcante, a Hebe Camargo e o Raul Gil. Eles nos roubavam duas, três, quatro horas ou mais dos nossos sábados e domingos, sem que déssemos conta desse tempo perdido. Eles vendiam ilusões. Comprávamos com prazer. Cadê o nosso senso crítico? Esqueça! Esse luxo estava restrito aos intelectuais, que sabiam na nossa existência e até falavam dela, mas o mundo deles era um; e o nosso, outro.

O que quero deixar claro com isso é que tudo era mais simples. Éramos inocentes. Úteis ou inúteis, conforme fosse o caso. Não olhávamos para os lados, não questionávamos além do nosso quadrado. Só a carestia, as fofocas de vizinhos, o transporte ruim, a escola péssima, o posto médico inexistente; as ruas sem iluminação, sem asfalto e sem esgoto.

Na medida que a situação socioeconômica das famílias foi melhorando, graças ao processo de industrialização da minha cidade, foi possível o acesso a bens e serviços. Também, foi possível construir novas casas e até comprar carros – usados. Contudo, não vamos exagerar, por achar que chegamos ao paraíso na Terra. Cabe frisar que a melhoria na renda não era para todos. A velha desigualdade social brasileira estava (e ainda está) profundamente arraigada. Talvez não nos livremos dela tão cedo. Enquanto isso, o barco segue…

Dou um pequeno salto no tempo. Chegamos a 1985, ano que marca o fim de 21 longos anos de regime militar, o qual foi derrotado, entre muitos fatores, pelos péssimos números da economia. Tancredo Neves foi eleito pelo Colégio Eleitoral. O primeiro presidente civil, sucessor de cinco generais-presidentes, morreu antes de receber a faixa presidencial. Quem pegou a vaga foi o vice José Sarney. O novo ciclo político batizado de Nova República, para arrumar a casa, ajudou a criar mecanismos que devolveram as liberdades democráticas aos brasileiros, entre eles, a promulgação da nova Constituição em 1988. Apelidada de Constituição Cidadã, com o perdão do exagero, tão extensa e complexa quanto a Bíblia. Decorridos mais de trinta anos da sua promulgação, a Carta de 88 se revelou um verdadeiro manual de instruções de como é possível dar rasteiras jurídicas — pasmem! — na própria Constituição. A hermenêutica passou a servir de instrumento interpretativo para benefício de interesses pouco ou nada republicanos, como ficou bem explícito neste pandêmico e ‘pandemônico’ biênio de 2020/2021.

Cabe observar que, no parágrafo acima não citei a televisão. Não precisava. Ela, já livre as amarras da censura, ampliou sua influência sobre a sociedade, ao passo que, enfim, alcançou todo o território nacional. Os costumes foram sendo, mais do que antes, amoldados aos modismos, expressões, ao culto aos mitos, a um senso de quase unicidade das ideias, alimentadas por factoides, fake news (sim, essa coisa é velha), falsos paradigmas, pensamentos de mão única. Já éramos gado muito antes desse termo pejorativo estar associado àqueles que passaram a pensar e agir fora de um quadrado político-ideológico ainda onipresente na sociedade brasileira. Os fatos de agora falam por si.

Dou mais um saltinho no tempo. E eis que chega a internet em meados da década de 1990. Inicialmente tímida, tecnicamente limitada, cara e, claro, para poucos. A rede mundial conquistou o mundo a uma velocidade que rádio e a televisão jamais conseguiriam. Mais de trinta anos depois, nada se faz sem a internet, mesmo aqueles que, salvo exceções, se orgulhem de viver sem ela. Sem alternativas, a televisão e o rádio tiveram que se integrar a ela, de maneira que, em consequência, a informação passou a assumir novas dimensões, ou seja: as pessoas ganharam o poder de duvidar de apenas uma fonte de informação, para desespero daqueles que, em tempo idos, tinham o poder da palavra, da verdade absoluta. Só para citar um exemplo, William Bonner, o âncora e editor-chefe do Jornal Nacional, da Rede Globo, já não possui o poder da verdade absoluta. Tudo que ele diz é questionado, visto que, foi por meio da internet que as pessoas passaram a duvidar da informação de mão única. Em outras palavras, a televisão perdeu a majestade para sempre. Os tempos são outros. Contudo, isso não significa que as pessoas conquistaram o poder de serem realmente independentes.

A internet, apesar de seus inúmeros benefícios, também deu uma nova cara aos conflitos que sempre estiveram presentes. Agora, tudo acontece muito rápido, sem prazo para analisar a informação, e tirar dela os benefícios a que todo tem (ou teriam) direito. Se antes da internet a informação era manipulada por poucos, hoje é por muitos. A confusão está instalada. A rede mundial trouxe as redes sociais, os blogs, os portais, os podcasts. Para o bem e para o mal, frise-se.

Junto a isso, aquilo que, lá nos anos 90, eu, em minha ingenuidade, achava que seria o marco de uma vida melhor, das fronteiras abertas, das liberdades individuais respeitadas, do controle da pessoa sobre seus próprios atos, do livre fluxo da livre expressão do pensamento, do fortalecimento da democracia e da derrubada de regimes autoritários, do diálogo entre os diferentes, do fim do arbítrio, do controle da sociedade sobre o Estado e não o contrário, bem… o que posso dizer é que o Admirável Mundo Novo de Adous Huxley está entre nós. E 1984, de George Orwell, também.

Maus exemplos temos de montão – escolha um, caro leitor do Agulha. Eu escolho um (poderiam ser dois, cinco, dez. Não quero transformar este escrito em um livro):

Em 08/03/2021, enquanto o País comemora o Dia Internacional da Mulher, o site noticioso G1 publicou a seguinte matéria:

“O ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal, anulou nesta segunda-feira (8) todas as condenações do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva pela Justiça Federal no Paraná relacionadas às investigações da Operação Lava Jato.
Com a decisão, o ex-presidente Lula recupera os direitos políticos e volta a ser elegível. (…)

Ao decidir sobre pedido de habeas corpus da defesa de Lula impetrado em novembro do ano passado, Fachin declarou a incompetência da Justiça Federal do Paraná para julgar quatro ações — as do triplex do Guarujá, do sítio de Atibaia e duas ações relacionadas ao Instituto Lula.
Segundo o ministro, a 13ª Vara Federal de Curitiba — cujos titulares na ocasião das condenações eram Sergio Moro (triplex) e Gabriela Hardt (sítio) — não era o “juiz natural” dos casos.
Agora, os processos serão analisados pela Justiça Federal do Distrito Federal, à qual caberá dizer se os atos realizados nos quatro processos podem ou não ser validados e reaproveitados. (…)

A decisão de Fachin tem caráter processual. O ministro não analisou o mérito das condenações. Isso quer dizer que ele não inocentou Lula das acusações — somente entendeu que o juízo competente para julgar o ex-presidente não era a 13ª Vara Federal de Curitiba. (…)

De acordo com o gabinete de Fachin, julgamento do plenário do Supremo Tribunal Federal já havia restringido o alcance da competência da 13ª Vara de Curitiba.
“Inicialmente, retirou-se todos os casos que não se relacionavam com os desvios praticados contra a Petrobras. Em seguida, passou a distribuir por todo território nacional as investigações que tiveram início com as delações premiadas da Odebrecht, OAS e J&F. Finalmente, mais recentemente, os casos envolvendo a Transpetro (subsidiária da própria Petrobras) também foram retirados da competência da 13ª Vara Federal de Curitiba”, diz a nota.
De acordo com o texto, nas ações penais envolvendo Lula, assim como em outros processos julgados pelo plenário e pela Segunda Turma do STF, “verificou-se que os supostos atos ilícitos não envolviam diretamente apenas a Petrobras, mas, ainda outros órgãos da Administração Pública”. (…)


Teor da decisão.
A decisão individual do ministro Fachin foi tomada com base na ação apresentada pela defesa do ex-presidente Lula em novembro do ano passado que questionou a competência da 13ª Vara Federal de Curitiba para processar e julgar a ação do triplex do Guarujá e pediu a anulação das decisões tomadas no âmbito desse processo.
O argumento foi o de que não há relação entre os “desvios praticados na Petrobras”, investigados no âmbito da Operação Lava Jato, e o custeio da construção e reforma do triplex, que a acusação diz terem sido feitas em benefício de Lula. (…)

Fachin afirma que, ao analisar a questão da competência, é preciso ser imparcial e apartidário.
“As regras de competência, ao concretizarem o princípio do juiz natural, servem para garantir a imparcialidade da atuação jurisdicional: respostas análogas a casos análogos. Com as recentes decisões proferidas no âmbito do Supremo Tribunal Federal, não há como sustentar que apenas o caso do ora paciente deva ter a jurisdição prestada pela 13ª Vara Federal de Curitiba. No contexto da macrocorrupção política, tão importante quanto ser imparcial é ser apartidário”, disse Fachin.
O ministro considerou que as acusações contra o ex-presidente Lula não se limitam a supostos crimes cometidos em relação à Petrobras. (…)

De acordo com o ministro, “na estrutura delituosa delimitada pelo Ministério Público Federal, ao paciente são atribuídas condutas condizentes com a figura central do grupo criminoso organizado, com ampla atuação nos diversos órgãos pelos quais se espalharam a prática de ilicitudes, sendo a Petrobras S/A apenas um deles”.

A decisão de Fachin ainda atinge outros casos ligados ao ex-presidente Lula, como os habeas corpus que questionavam a suspeição do ex-juiz Sergio Moro e procuradores da força-tarefa do Paraná. Segundo a TV Globo apurou, Fachin tomou a decisão de forma individual sem conversar com outros colegas. (…).”

https://g1.globo.com/politica/noticia/2021/03/08/fachin-anula-condenacoes-de-lula-relacionadas-a-operacao-lava-jato.ghtml

Ok. Não vamos punir o carteiro por ele trazer uma notícia ruim. A péssima notícia ilustra muito bem a minha ingenuidade descrita em um parágrafo anterior. Juntas, a internet e os demais meios de comunicação de massa deixaram bem claro que possuem o poder desiludir aqueles que acreditavam no expurgo de velhos hábitos de nossas vidas. O que antes era realizado a portas fechadas e respaldadas por forte censura estatal, agora é feita às claras e na cara de todos. Pela primeira vez em nossa História, um ex-presidente foi preso por cometer crimes graves contra o País. Vimos, ao vivo, o momento em que o ex-presidente Lula se rendeu à polícia, não sem antes retardar sua rendição e proferir um discurso diante de seguidores exaltados e inconformados. Presumo, baseado no que vejo agora, que os mecanismos que visavam a soltura da figura do carismático ex-sindicalista começaram a funcionar naquele momento. Por pura dedução, foram testadas todas as saídas. Entre tentativas e erros, as estratégias incluíam mudar o entendimento dos ministros do Supremo Tribunal Federal quanto a aplicação da prisão em segunda instância. Essa decisão beneficiou não apenas o ex-presidente Lula, bem como toda sorte de malfeitores que agora vivem na mais perfeita liberdade. Atônita, a sociedade assistiu a tudo indignada e pronta para sacudir o país com protestos em todas as grandes cidades. Mas, eis que surge um novo personagem nesse cenário: o vírus chinês, causador da pandemia que assola o mundo inteiro. Dentro desse contexto, dada a nova e dolorosa realidade, encostar contra a parede os 11 ministros da mais desacreditada instituição brasileira passou a ser uma necessidade secundária, embora os protestos prossigam na internet, mas sem a mesma força de uma mobilização presencial. Em outras palavras, o medo venceu a esperança. E não me refiro apenas à peste chinesa, mas às retaliações vindas da suprema corte contra aqueles que ousam se insurgir contra os desmandos de alguns ministros, capazes, conforme dito em um parágrafo anterior, de dar rasteiras na Constituição à qual estão encarregados de proteger.

Lamentavelmente, a elite política, grande parte da classe artística, da imprensa, dos formadores de opinião, fortemente ligados ao ex-presidiário estão tirando proveito do caos em que vivemos para fazer valer seus interesses. Muita mais veremos a adiante.
Com o ex-presidente e ex-presidiário solto (ou à solta), já se desenha sua volta ao poder em 2022, em contraposição ao atual presidente Jair Bolsonaro, tido e havido como a Besta do Apocalipse, ou, um acidente de percurso, apesar dos mais de 57 milhões de votos que o puseram na presidência da República em 2018.

Enquanto as novas eleições não chegam, vemos a todo o momento, cenas inacreditáveis de uma febre de cancelamentos, lacrações, máscaras caindo, ministros da suprema corte trocando ofensas entre si, jornalistas maquiando a verdade, youtubers posando de donos da verdade, machos em desconstrução, artistas de direita combatendo artistas de esquerda, prisões ilegais de jornalistas, aplicação da censura no Facebook, Twitter, Instagram, YouTube, etc., lacrações, enfim… A minha utopia internética ainda não aconteceu como eu imaginava trinta anos atrás.

Embora o cenário atual seja dos mais cinzentos, não posso me dar ao luxo de dizer que tudo está perdido. Não está. O que está acontecendo é uma desordem geral das coisas (se bem que nunca houve uma ordem mesmo), do tudo ao mesmo tempo agora. Apesar de tudo, temos algumas janelas abertas. São oportunidades de mudanças para melhor. Contudo, para que isso aconteça é preciso estar atento ao que acontece, não se deixar tolher nem intimidar pelos donos da verdade absoluta (que será outra amanhã, na próxima semana ou no próximo mês).

Por fim, já sinto saudades do hoje e do que está escrito nesta matéria. Amanhã, a realidade será outra; talvez a saudade também seja.

14/03/2021

Atenção: este texto reflete apenas o meu ponto de vista sobre o fato, não significando que eu esteja com a razão. Contudo, você é livre para manifestar para manifestar sua concordância ou discordância, desde que mantido o mínimo de respeito pela minha opinião.

(Texto Publicado  Originalmente no Extinto Site “BarDoPoeta, em 2021)

Genecy Souza, de Manaus, AM, é Livre Pensador.

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