Art by Barata

Há Algo de Podre No Reino de Dom Zunga Primeiro (Único e Último)

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Genecy Souza


Confesso sem corar: nunca fui fã de Roberto Carlos. Quando eu nasci, ele já era um sucesso. É Proibido Fumar estava nas paradas, e tudo que era moderno, avançado, uma brasa, estava associada a sua figura de jovem rebelde e grande expoente da Jovem Guarda. Contudo, jamais comprei seus discos, e sempre achei o título de “rei” um tanto descabido, exagerado, e por vezes desproporcional ao tamanho da carreira, seja da dele ou de outro artista. Para mim, a figura de RC – as roupas, o riso sardônico, o jeito de bom moço, as manias e as superstições – é um pé no saco, seja pelo excesso de adulação, seja pela mesmice em que sua trajetória está metida, noves fora algumas canções notáveis, especialmente aquelas influenciadas pela soul music. Embora isso não seja uma exclusividade do autor de Detalhes, costumo evitar proferir epítetos rei/rainha da guitarra, do disco, da voz, do rádio, do baião, do rock, do blues, dos baixinhos — e Rei dos Reis, conferido ao Cristo –. Prefiro os reis e rainhas de fato, os fictícios e os figurativos – Rei Leão, Rainha Elizabeth II; Rei de Copas, Rainha Vitória.

Acredito que todo artista possui um grau de importância determinado pela qualidade de suas obras, pelo número de admiradores (e detratores), bem como pelo contexto histórico, social e político em que elas estão inseridas. Charles Chaplin, Salvador Dali, Michelangelo, Tim Maia, Sid Vicious, Stanley Kubrick, Madonna, Vicente Celestino, Robert de Niro, Dominguinhos, Villa-Lobos e, claro, Roberto Carlos Braga, são exemplos do infinito campo de possibilidades de análise, crítica a que a História os submete, independentemente de suas vontades. O que não se pode admitir é que qualquer um dos artistas acima descritos (ou seus herdeiros) queiram impor a versão particular da história de suas vidas. É para isso que Roberto Carlos luta com afinco, desde que alcançou seus “um milhão de amigos” e bajuladores o fizerem acreditar que suas vontades tinham força de lei. Roberto quer o monopólio de sua biografia. Todavia, os fatos deixam claro que querer não é poder. Uma figura pública não pode impedir que a sociedade conheça sua biografia, tampouco impor exigências impossíveis de cumprir.

Quando o jornalista André Barcinski publicou em seu blog a matéria que se inicia com o excerto acima, foi porque o Rei já havia ultrapassado todos os limites do bom senso, tal qual um soberano despótico ciente do próprio poder, que, quando contrariado, faz valer suas vontades sobre tudo e todos, pouco importando os meios empregados para isso. E é esse poder, até então desconhecido, seja pela grande maioria de súditos e não-súditos, seja por parte de seus admiradores e detratores – sim, apesar da enorme popularidade, RC nunca foi uma unanimidade entre a crítica especializada, formadores de opinião, entre outros segmentos culturais – foi impiedosamente aplicado sobre o livro Roberto Carlos em Detalhes, sua biografia não-autorizada lançada em dezembro de 2006, a qual foi objeto de uma guerra jurídica travada contra o pesquisador Paulo Cesar de Araújo e a Editora Planeta, poucos dias após o lançamento.

No caso do biografado, o soberano se serviu de um pequeno, caro e eficiente exército de advogados para fazer valer direitos, baseados na interpretação questionável dos artigos 20 e 21 do Código Civil, que tratam de questões ligadas a privacidade do cidadão, confrontando com o que diz a Constituição Federal, em seu artigo 5º, parágrafo IX, que trata da liberdade de expressão, ou seja, uma lei menor batendo de frente com a Carta Magna, mãe de todas as leis. O Rei, munido de sua influência, fez valer a lei menor, e a Justiça disse: “Sim, Majestade, seu desejo é uma ordem”. Simples assim.

Ao contrário do elefante, Roberto Carlos sabe como poucos onde, como e contra quem aplicar sua força, no caso, Paulo César de Araújo, seu ardoroso fã desde criancinha e um pesquisador obstinado, detalhista e apaixonado pela obra e a vida do mais popular cantor brasileiro há mais de 50 anos. Roberto Carlos em Detalhes nada mais é do que uma coletânea de matérias publicadas em jornais e revistas, além dos bastidores da TV e do rádio, passando pelos circos, cinemas e moquifos onde o rapaz humilde ainda plebeu, fã de João Gilberto, se apresentava, desde o final dos anos 1950 até mais recentemente, quando, pouco importando os meios e métodos, o Rei ainda faz valer seu poder. Poder esse posto em causa logo a seguir a polêmica levantada em por causa do recolhimento do livro das livrarias e de qualquer ponto de venda onde a biografia estivesse à venda. Contudo, as coisas não saíram como RC esperava. A reação veio. E veio forte.

Paulo Cesar de Araújo, embora tenha perdido a batalha numa vergonhosa e humilhante (para ele) audiência na Justiça, exposta em detalhes em O Réu e o Rei, livro que expõe sem meias palavras os bastidores da criação de Roberto Carlos em Detalhes, do processo e das reações a ele; das declarações vergonhosas de figuras carimbadas da cultura brasileira; dos gestos de apoio vindos de quem menos se esperava; do apoio de parte da imprensa; dos golpes baixos de um tal “Procure Saber”. Na verdade, O Réu e o Rei é muitíssimo mais interessante que a biografia não-autorizada que deu origem ao debate que por ora envolve as altas instâncias da República, pois, envolve uma questão capital em qualquer sociedade que se julgue livre: a liberdade de expressão. O livro é de tirar o fôlego, principalmente por demonstrar como funciona o showbizz brasileiro longe dos holofotes, as influências políticas, os posicionamentos vergonhosos de nomes celebrados, sobretudo os ligados à MPB. Embora tenha vencido a batalha, Dom Zunga Primeiro não teve coragem de mandar recolher O Réu e o Rei por já estar nu e exposto o bastante – preferiu deixar quieto -. De qualquer modo, como nos contos de fadas, o bem vence no final. Torço pelo réu.

(*) (Zunga é o apelido de infância de Roberto Carlos)

Roberto Carlos em Detalhes
Paulo Cesar de Araújo
Editora : ‎ Planeta
Lançamento: 2006
502 Páginas

Texto publicado na 4ª edição da revista “Gatos & Alfaces“, Agosto 2014

Paulo Cesar de Araújo é professor universitário, historiador, escritor e biógrafo. 
Nascimento: 14 de Março de 1962, Vitória da Conquista, Bahia
Além de “Roberto Carlos Em Detalhes“, 2006, lançou “O Réu e o Rei: Minha História com Roberto Carlos, em Detalhes”, 2014, e “Roberto Carlos Outra Vez: 1941-1970 (Vol. 1)”, 2021.

Genecy Souza, de Manaus, AM, é Livre Pensador.

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