Chantagem

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Barata Cichetto


Chama de chantagem emocional minha confissão de desejo suicida. E se é por falta de coragem qual é a vantagem? À minha imagem desenhei uma viagem. Solitária a um mundo sem tanta dor. E dormi agarrado com o cobertor. Morri à noite. Acordei de manhã banhado em suor. Eu não queria caminhar sozinho depois de carregar tanta gente nas costas. Minha tolice foi acreditar. Agora quero apenas deitar e fechar meus olhos. Sonhei que era escritor e de manhã não tinha nada escrito. Apenas contas penduradas na geladeira que tenho que pagar. A geladeira e as contas. Heróis pulando na tela. Mortos despedaçados no jornal. E eu que nem tenho um quintal tenho que sonhar acordado com um pedaço de papel. Meu território é uma folha de papel. Uma tela em branco. Pinto rostos desumanos de cores berrantes. São monstros alados. Criaturas soturnas e outros arremedos que causam medos. Não tenho medo da morte. Do nada absoluto. Tendo medo da dor. Senti tanta dor na minha existência que não quero sentir dor ao morrer. É paradoxal que a mesma dor que me impele a acabar comigo seja a que me afasta do meu fim. A cor é chave de tudo. Nos faz sentir vivo e nos faz querer morrer. Há tempos não olho no espelho. Tenho medo do meu rosto me acusando de covardia. Ela disse que é chantagem essa bobagem de eu querer morrer. A ingratidão é a arma dos injustos e dos comunistas. Dos religiosos e dos artistas. Emagreço dia após noite. Espero mesmo sumir numa poça onde sobrem apenas meus ossos. Coloquem num saco preto de lixo e joguem no esgoto. Escrevo desabafos sem vírgulas que é para não esquecer. É péssima literatura falar sem vírgulas. Sem travessão e sem nenhuma expressão poética. O que importa? Escrevo para esquecer. Lembrar é dor. Do lembrar do que foi feito. E não ter sequer o direito de lembrar. Espero que seja direito ao menos morrer. Sem que ninguém ache que levo vantagem por não ter coragem de morrer. Que doa em mim ainda mais a saudade e o rancor de quem chupou minhas carnes e cuspiu aos porcos. Não precisa achar que é chantagem. Nem temer. Tem tempo que estou morto. Mesmo antes de saber.

08/09/2019

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Pornomatopéias
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Barata Cichetto, 1958, Araraquara – SP, é poeta, escritor. Criador e Editor do Agulha.xyz e Livre Pensador.

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